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Polzonoff

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"Para nós, há apenas o tentar. O resto não é da nossa conta". TS Eliot.

Entrevista exclusiva

Marco Aurélio Mello: “Não se tem semideus a ocupar cadeira de juiz”

só faltou o ministro Marco Aurélio Mello esclarecer de uma vez por todas se o feijão vai por cima ou por baixo do arroz.
Só faltou o ministro Marco Aurélio Mello esclarecer de uma vez por todas se o feijão vai por cima ou por baixo do arroz. (Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil)

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Ligo para o ministro Marco Aurélio Mello a fim de explicar a ele a proposta desta entrevista. Não me interessa colocá-lo contra a parede nem bancar o espertinho com rasteiras retóricas de quaisquer tipos. Se digo que a vida é uma grande conversa, é nisso que acredito. Ele atende com um “alô” que se encerra num arfar típico - "aloah".

Explico que, se pretendem alguma coisa, minhas perguntas despretensiosas querem revelar o Marco Aurélio desacompanhado do vossa-excelência que precedeu seu nome ao longo de 31 anos no STF. Um Marco Aurélio mais próximo do vossa-senhoria, ou melhor, do você. Um Marco Aurélio sem o peso da capa de ministro da Suprema Corte. Um Marco Aurélio que, dizem as boas línguas, é uma daquelas personalidades públicas dotadas de uma verve mui particular e cujo molde se perdeu.

Conversamos por uns poucos minutos. O suficiente para eu desligar o telefone com a impressão de que deve ser bom, ótimo, excelente, extraordinário beber um chope com o ministro recém-aposentado do STF. Envio as perguntas por e-mail. Qualquer temor que eu pudesse nutrir por ousar perguntar a um ministro do STF se o certo é pôr o feijão por cima ou por baixo do arroz desaparece.

Os dias passam. Nada das respostas. Meu editor sugere que talvez quem sabe eu, atrapalhado que sou, possa ter apagado o e-mail sem querer. E lá vou eu fuçar nos milhares de spams acumulados. Nada. Até que cedo à ansiedade e decido ligar para o ministro novamente.

Ele atende ao primeiro toque. De novo aquele "aloah" simpático. Diz que a entrevista está pronta e que só falta uma revisão. Confesso-me aliviado quando ele afirma não ter se ofendido com nenhuma das perguntas. Afinal, não era a intenção mesmo. É dia de jogo do Flamengo e, com a voz animada, Marco Aurélio Mello lê uma das respostas que preparou para mim, justamente aquela em que fala do time do coração. Me sinto tão à vontade que quase o chamo de Marquinho. Ele me promete enviar as respostas ainda naquele dia.

As horas passam e... nada. No dia seguinte, cometo a ousadia (que, neste caso, é só uma palavra bonita para disfarçar minha chatice) de ligar novamente para o ministro. Como o Flamengo tinha acabado de ganhar do Defensa y Justicia por 4 x1, começamos a falar sobre futebol. Empolgado com a vitória, Marco Aurélio Mello fala da atuação do goleiro do Flamengo – que, pelo que entendo (não assisti ao jogo), apesar da goleada sofreu um frango.

Até que as respostas finalmente chegam à minha caixa de entrada. Nelas, Marco Aurélio é um bocado mais formal do que eu imaginava. E muitíssimo mais formal do que o homem com o qual conversei ao telefone. Tanto que as respostas me são entregues rubricadas, como um documento oficial.

Caio na real e entendo que jamais tomarei um chope num pé-sujo com Marco Aurélio Mello. Não que ele não pudesse vir a querer (sou bom de papo, vai), e sim porque o peso do cargo que ele ocupou jamais permitirá. Era para ser o Marquinho, mas não deu. Com vocês, Sua Excelência o Ministro Marco Aurélio Mello:

Vou começar a entrevista com uma pergunta que sempre faço àqueles que não conheço muito bem. O tipo de humor faz o ministro Marco Aurélio Mello rir?

A vida é alegria, então o humor deve ser cultivado. Qualquer tipo, desde que não descambe para o campo chulo, é bem-vindo.

O senhor é reconhecidamente um grande frasista, o que denota conhecimento literário. Qual o seu clássico preferido da literatura universal e por quê?

A minha leitura é eclética, sendo que sempre tive à mão um romance. Por que um romance? Porque nele nos defrontamos com conflitos de interesse e adotamos posição. Ao fazê-lo, aguçamos a sensibilidade, aperfeiçoando a formação humanística. Não imagino elaborar livro de memórias.

O senhor já pode declarar qual o seu time do coração?

Jamais mudei de camisa. Torcedor do Flamengo continuarei até a undécima hora, pouco importando, já que faz parte da competição, se mostre ganhador ou não deste ou daquele campeonato.

Quando penso no senhor, penso nas decisões e na sua postura institucional, claro. Mas também na prosódia característica, nas alfinetadas, nas frases de efeito. Ou seja, na imagem que a imprensa construiu do senhor. Essa imagem, que às vezes resvala no caricatural, o incomoda?

De forma alguma. Recebo toda e qualquer colocação com espírito aberto tanto que, na residência, tenho na parede um sem-número de publicações revelando caricaturas. Em colegiado, ocorre o somatório de forças distintas, sobressaindo o domínio técnico do integrante e, acima de tudo, a formação humanística. Divergências são naturais.

É muito difícil para um ministro do STF reconhecer um erro? O senhor já perdeu o sono por causa de uma decisão?

Sempre me pronunciei segundo o convencimento. É possível que tenha errado ao concluir sobre desfecho de algum caso, mas jamais parei para fazer esse balanço. No colegiado, não disputei coisa alguma, muito menos a superioridade intelectual. As partes é que se mostram em conflito e o julgador há de manter absoluta equidistância, absoluta imparcialidade.

Um passarinho de ascendência húngara me disse que o senhor acredita que o sofrimento tem um caráter edificante. É verdade? Essa crença tem origem cristã, sobre o valor da Cruz? E como o senhor vê essa busca atual da geração social pela ausência de qualquer sofrimento, inclusive os emocionais?

A vida revela fatos positivos e negativos. Jamais concluí que o sofrimento tem caráter edificante. Evidentemente, com os pés no chão, devo admitir que deságua em experiência e abre a possibilidade de revisão de atos. O aperfeiçoamento humano é infindável. Deve-se marchar no campo utópico e buscar a perfeição, muito embora inalcançável.

Depois de tantas décadas no STF, o senhor certamente se deparou com o que há de pior no ser humano. O senhor ainda confia nas pessoas?

Evidentemente, nos conflitos de interesse, surgem quadros surpreendentes. Nem por isso há de perder-se a esperança. Presume-se o que normalmente ocorre, e não o excepcional. Por isso mesmo, confio nos concidadãos, cada qual atuando no campo que lhe é próprio e fazendo de forma a não passar em branco nesta existência.

O garantismo nasceu para proteger o indivíduo do Estado. Mas, diante de uma sensação generalizada de impunidade, hoje em dia a sociedade clama por uma mão mais pesada do aparato estatal. É o chamado “punitivismo”. Como conciliar a função nobre da Justiça com os anseios de uma sociedade que muitas vezes não entende o valor de um habeas corpus?

Sim, é difícil colocar-se no lugar do juiz, colocar-se no lugar do semelhante. Não cabe abandonar as garantias constitucionais e legais. Por vezes, o julgador não pode e não deve atender ao clamor social. Quando isso ocorre, é alvo de crítica. O cidadão tem anseio de afastar mazelas e, muitas vezes, se esquece que em Direito o meio justifica o fim e não o fim ao meio. Esquece-se que as garantias são acionadas por quem cometeu desvio de conduta e que visam, acima de tudo, um julgamento justo.

O ativismo judicial é um problema dentro do STF ou tudo não passa de teoria da conspiração?

O que é o ativismo judicial? Evidentemente o rótulo diz respeito à atuação do Judiciário, como convém. Não se cria o critério de plantão. A atuação é vinculada ao direito aprovado pelo Congresso. A atuação marcante não se confunde com o direito alternativo, ou seja, o direito encontrado nas ruas. Não vejo — no que, por vezes, critica- se de forma exacerbada a atuação do Judiciário — teoria da conspiração. Alfim, é o direito de espernear, ou seja, de criticar o que de forma momentânea e isolada não convém ao dirigente, ao homem público ou ao cidadão.

Aliás, o senhor tem aspirações políticas? Alguma intenção de se candidatar?

Sinto-me, após 55 anos no serviço público, 42 em colegiado julgador e 31 no Supremo, realizado. Não almejo qualquer cargo, muito menos político. É hora de cuidar da convivência mais estreita em família, acompanhando o crescimento dos netos.

Nos anos 1990, eu sabia a escalação da seleção, mas não sabia o nome dos ministros do STF. Hoje sei o nome dos ministros, mas não tenho a menor ideia de quem seja o goleiro da seleção. E conheço muita gente assim. A que o senhor atribui o inegável (mas controverso) protagonismo do STF hoje em dia? E mais: não seria mais saudável para a instituição se manter discreta?

Pergunto eu: o que é manter-se discreta? O Judiciário não atua de ofício. É provocado, visando formalizar a solução do conflito de interesses, restabelecendo a paz social. A sociedade passou a judicializar mais as questões. Então, o Supremo, provocado, atua segundo o Direito e emite decisão a respeito. Coloca-se na vitrine e é natural que o inconformados simplesmente usem o estilingue. A transparência, a publicidade, considerada até mesmo a TV Justiça — uma TV educativa —, deu ênfase à atuação do Judiciário.

Como o STF, em teoria, tem a decisão final sobre as coisas, nós aqui de fora ficamos com a impressão de que os ministros são semideuses. Como é lidar com esse poder de decisão final sobre, por exemplo, a prisão ou a liberdade de uma pessoa?

Magistratura é opção de vida. Aquele que a abraça deve dedicar-se com pureza d’alma. Não se tem semideus a ocupar cadeira de juiz, mas um ser humano que busca proceder e julgar segundo o figurino estampado no arcabouço normativo. Se a decisão atende aos anseios populares, tem-se aplausos. Se não atende, há as críticas e, por vezes, exacerbadas. Nem por isso cabe intimidação. O magistrado não ocupa cadeira voltada a relações públicas. Deve estar em paz com a própria consciência, percebendo a importância de julgar conflitos de interesse e julgar os semelhantes, fazendo-o como Estado e, portanto, detendo força coercitiva. Eis atividade que muito gratifica. O magistrado há de ter sempre os pés no chão e atuar de forma vinculada ao arcabouço normativo e a partir da formação humanística possuída, predicado de importância maior para realizar-se o trinômio lei, direito e justiça.

Ao longo de sua carreira, não foram poucas as controvérsias. A mais recente delas envolveu o traficante André do Rap. Sem querer entrar no mérito desse caso específico, gostaria de saber como o senhor tratava esses casos de grande repercussão em casa? O senhor conversava sobre eles na mesa de jantar, por exemplo?

Indo ao Tribunal apenas nos dias de sessão e com passagem relâmpago no Gabinete, estabeleci, desde cedo, que o escritório residencial é local de atuação. A mesa de refeição não é lugar para ferir-se temas controversos. O caso André do Rap é exemplar da atuação sem levar em conta o envolvido. O Código de Processo Penal é categórico ao balizar, no tempo, a custódia processual, versando o período de 90 dias. Prevê que esse espaço de tempo pode ser renovado mediante representação policial, requerimento do Ministério Público ou, até mesmo, de ofício pelo Juízo. Não havendo renovação, a própria norma tem a custódia como ilegal. Defrontando-se o juiz com habeas corpus, há de examinar se se verifica ou não a ilegalidade e isso ocorrendo, pouco importa a repercussão da decisão a ser proferida, deve implementá-la, tomando concreta, tomando efetiva a legislação. Paga-se um preço por se viver em um estado Democrático de Direito e é módico, estando ao alcance de todos: o respeito irrestrito à ordem jurídica. Ruy Barbosa já dizia que fora da lei não há salvação. Não se avança culturalmente mediante atalhos.

O que o incomoda mais: os críticos ou os puxa-sacos?

Nem uns nem outros. A crítica construtiva é sempre bem-vinda e os elogios surgem como estímulo ao aperfeiçoamento na atuação judicante. Claro que os excessos devem ser desconsiderados.

O perdão é uma ideia sofisticada demais para o nosso tempo?

Digo que na vida em sociedade há de haver compreensão, há de haver tolerância. O cidadão não pode implementar a justiça pelas próprias mãos, sob pena de praticar crime. Daí o perdão quanto a ato que se mostre agressivo e discrepante da normalidade é passo que alguns não conseguem dar.

Cada vez mais, o STF é chamado a se pronunciar sobre questões triviais do cotidiano. Se o senhor fosse chamado a arbitrar, diria que o certo é pôr o feijão por cima ou por baixo do arroz? E o mais importante: o certo é “biscoito” ou “bolacha”?

A organicidade é própria ao Direito e isso revela segurança jurídica. As normas dos códigos de processo visam saber o que pode ou não ocorrer na tramitação processual. Há de prevalecer sempre o bom senso.

Como o senhor acredita que os livros de história (tanto de história “comum” como de história do Direito) o retratarão para a posteridade?

Na atividade, diariamente prestamos contas aos concidadãos, aos contribuintes. Evidentemente não se busca o aplauso. Claro que é muito gratificante perceber, como vem ocorrendo, após a aposentadoria, o reconhecimento geral. Isso se deve a atuação com desassombro, com pureza d’alma. Ao implementá-la, não visa o magistrado resultado, aplausos. É cumprir o dever e praticar atos que contribuam, de alguma forma, para alcançar-se o Brasil sonhado. Sinto-me, após tantos anos como julgador, plenamente realizado. Sempre busquei segundo minha formação — técnica e humanística — implementar o melhor em termos de avanço cultural.

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