Antes de o texto propriamente dito começar, convém explicar que não escreverei aqui uma daquelas crônicas cheias de memórias das tardes da minha infância, nas quais apareço assistindo ao Programa Silvio Santos numa TV de tubo na rua Rio Mucuri. Porque sempre me incomodaram esses obituários que menosprezam o morto para sobrevalorizar o autor. Dito isso, dois pontos.
Há duas semanas, conversava com um amigo sobre a iminente morte do Silvio Santos, até então internado num hospital de São Paulo. O Silvio Santos que nem precisa de aposto, porque todo mundo sabe quem é, e que morreu no sábado (17), aos 93 anos. Pois dizia o amigo na ocasião que a morte de Silvio Santos pararia o Brasil. “Como a morte do Senna?”, perguntei, tentando encontrar um paralelo. “Não! Vai ser muito maior!”, previu ele.
Ainda é cedo (escrevo este texto poucas horas depois do anúncio da morte de Silvio Santos) para cravar que o amigo estava errado. Mas acho que estava. Porque o Brasil dos grandes vultos não existe mais. Aquele Brasil que parou o carro no meio da rua e desceu apenas para bater palmas para o cortejo do Senna era outro. Não necessariamente melhor, embora mais simples, inocente e sincero em seu luto coletivo. Talvez até mais cristão.
Foi o que tentei dizer ao amigo, com outras palavras, estas: “Hoje em dia o brasileiro só quer de saber de política. O que não quer dizer que ele não vá sentir a morte do Silvio Santos. Talvez vá até sentir sinceramente a morte do velho animador das tardes de domingo. Mas não adianta. A vida e a morte não são páreos para a política. Essa é uma das grandes desgraças do nosso tempo”.
Não deu outra
Não deu outra. Concomitantemente à notícia da morte de Silvio Santos, o Twitter (que ninguém chama de “X” – e ainda bem) anunciou que, diante de ameaças de Alexandre de Moraes, achou melhor encerrar as operações da empresa no Brasil. A rede social continua ativa (por enquanto), mas sem representantes dispostos a serem presos pelo regime alexandrino.
Em pouco tempo, só se falava disso e eu me peguei pensando “ainda bem”. Porque era política e era absurdo e era grave e era preocupante. Mas pior seria usarem a morte de Silvio Santos para fazer proselitismo político. Não é mesmo?
Por que fui abrir a boca?!
Alguém da revista Veja achou que valia a pena usar a morte de Silvio Santos para falar de? Má oe! Quem é que sabe do que o jornalista queria tanto falar, a ponto de desrespeitar o luto de milhões de brasileiros? Você sabe? Você sabe? Essa mocinha aqui que veio com a caravana de Carapicuíba deve saber. Vem pra cá, vem pra cá. Você sabe a resposta? “De política”. [APLAUSOS] Aê! Acertou. Roque, dá o dinheiro pra ela.
Isso mesmo. Movido pelo cinismo que contamina a profissão, o colega achou que a morte era uma hora oportuna para criticar Silvio Santos pela proximidade dele com os militares durante a Ditadura e com o ex-presidente Jair Bolsonaro durante o curto mandato dele. Assim, reduziu o quase centenário Silvio Santos, que tanta coisa (certa e errada) fez na vida, a um mero ator político. A um agente de transformação da história. E para que não haja dúvida: a um inimigo da esquerda.
Porque é desta forma simplista e perversa que agem e veem o mundo os escravos das ideologias: se é de direita, merece ser odiado pela esquerda; se é de esquerda, merece ser odiado pela direita; se é isentão, merece ser odiado pelas duas. Se você descobrir a cura para o câncer, mas tiver votado no Lula, será condenado por quem votou em Bolsonaro. Se você acabar com a fome na África, mas tiver votado em Bolsonaro, será odiado por quem votou em Lula. Até depois da morte.
Amálgama tragicômico
Quem perde a humanidade a ponto de perder também a capacidade de olhar os lírios do campo não enxerga mais o outro pelo que ele é. Ou foi e fez e aconteceu. Pior: se enxerga alguma coisa é apenas o lado que mais lhe desagrada nesse tragicômico amálgama de incoerências que é o ser humano.
Descanse em paz , Silvio.
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