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O filósofo Olavo de Carvalho | RODOLFO BUHRER/Gazeta do Povo
Há quem acredite que Olavo de Carvalho é a grande força por trás de um projeto totalitário. Eu prefiro acreditar que somos melhores do que isso.| Foto: Rodolfo Buhrer/ Arquivo Gazeta do Povo

Meu amigo Martim Vasques da Cunha escreveu na revista Piauí um artigo bastante interessante, em vários sentidos, sobre o que ele chama de “tragédia ideológica”, numa referência à ascensão de Olavo de Carvalho à condição de filósofo do bolsonarismo – o que deu origem ao neologismo “bolsolavismo” (que, por algum motivo, sempre me lembra Botero). Ao expor sua história de formação intelectual, Martim (acho que posso chamar pelo primeiro nome a pessoa com quem já dividi um suculento bife à parmegiana) faz uma espécie de mea culpa para decretar: estamos diante de uma ameaça totalitária.

Vejo na história de Martim muitas semelhanças com a minha, apesar de eu jamais ter sido oficialmente aluno de Olavo de Carvalho. Mas discordo dele no principal: não vejo o filósofo do bolsolavismo como uma ameaça à democracia, à liberdade ou à minha paz de espírito. Aliás, não o vejo como outra coisa que não uma figura algo caricata da Internet, com um poder bastante limitado dentro de um Estado gigantesco. Na verdade, do jeito que as coisas estão é provável que Márcia Tiburi tenha mais poder do que Olavo de Carvalho dentro desse e de qualquer outro governo à esquerda ou à direita.

Orfandade

O que me une a Martim e a outros que se identificam como ex-olavetes é, num primeiro momento, uma sensação de orfandade. Quando Olavo de Carvalho começou a ganhar destaque entre aqueles australopitecos que escreviam blogs (eu incluído), o Brasil vivia um deserto de ideias. Paulo Francis, provavelmente a maior influência de toda aquela geração, estava morto e buscávamos um substituto. As alternativas iam de Daniel Piza a Diogo Mainardi.

Não eram alternativas ruins. Longe disso! Piza certa vez escreveu que Cristo morreu enforcado – mas naquela época a gente compreendia esses deslizes e tendia mais a perdoá-los. Mainardi sempre foi uma referência para quem admira o texto conciso e afiado, mas lhe faltava algo, talvez carisma. Havia ainda outros nomes que não vingaram nem na minha memória. Mas o cenário de busca era esse.

Aí "surgiu" Olavo de Carvalho, com um poder de encanto que faltava aos demais. E aqui me refiro a um estilo encantador de convencimento – o que é bem diferente do estilo encantador de retórica para as câmeras ou para as redes sociais. No meu caso, o que chamou a atenção para a obra do filósofo foi uma palavrinha: indivíduo.

A ela foram se somando outras posturas extremamente sedutoras de Olavo de Carvalho. O antiacademicismo, por exemplo. A coragem de dizer que a MPB é o que é (para bom entendedor). O olhar crítico sobre todas as coisas consagradas na cultura da época. Sério. A não ser que você já estivesse contaminado pela propaganda esquerdista universitária, era impossível não sentir um mínimo de curiosidade pelo que aquele senhor estava dizendo.

E assim, durante uns poucos anos, até 2004, deixei de me sentir intelectualmente órfão. Uma pena que eu sofra daquela Síndrome de Marx (o Groucho, não o outro) que me impede de fazer parte de clubes que me aceitem como sócio. Logo comecei a me incomodar com o pensamento de grupo e certa adoração a Olavo de Carvalho, como se ele fosse a reencarnação do Messias (o outro, não Bolsonaro). E daí cometi um texto bobo de humor que irritou Olavo de Carvalho e os seus.

Era uma bobagem na qual eu dizia que tinha encontrado Olavo de Carvalho no show dos Los Hermanos no Canecão. Insondáveis são os motivos que me levaram a escrever aquilo. Mas escrevi e a resposta de Olavo de Carvalho, ironicamente pedindo que as pessoas me ajudassem, porque eu estava querendo aparecer, foi uma espécie de revelação. Se tivesse estofo e maturidade naquela época, eu bem poderia ter escrito algo intitulado “Tragédia Ideológica” para me referir ao poder destrutivo da falta de humor em Olavo de Carvalho e nos olavetes – termo que só uso aqui porque perdeu o caráter pejorativo.

Desencanto

Nessa época, eu já tinha caído no desencanto que Martim vem a expressar agora, para o deleite de uma plateia que adora ver homens caídos. Não sou melhor por isso. Sou, no máximo, um tolo impulsivo que, durante quase duas décadas, perdeu a oportunidade de conviver com pessoas inteligentíssimas por causa de uma birrinha à toa, de um desencanto bruto, bem diferente da sensação ultra-analisada e, quero crer, depurada de hoje em dia. Para usar uma imagem cara a Freud, eu diria que era um menino matando o pai. Mas, ora (e eu odeio frases com “ora”, ora), não é exatamente isso o que estão fazendo todos os que hoje dão as costas a Olavo de Carvalho e o acusam de ser o arauto de um fascismo imaginário?

Uma vez desencantado, me coube o papel de observar com alguma apreensão a transformação de Olavo de Carvalho no guru do antipetismo. Todos ao meu redor estavam fascinados por aquele homem, por sua retórica enfática, para dizer o mínimo, pela forma como ele levava o cigarro à boca e enaltecia as armas, pelo uso do latim, do inglês, do francês, pelas referências obscuras. E principalmente pela forma como Olavo de Carvalho soube transformar seu conhecimento (que só não chamarei de enciclopédico aqui porque tenho horror a lugares-comuns) de modo a torná-lo palatável a toda uma geração formada pelo paulofreirismo. É algo para lá de admirável.

A tudo assisti de uma distância segura, até porque tinha problemas maiores para resolver. Então Olavo de Carvalho se aproximou de Jair Bolsonaro (ou vice-versa) e, por consequência, do poder. Foi a hora de toda aquela retórica sedutora se deparar com a realidade muito concreta dos corredores da burocracia e com as consequências, no mundo real, de palavras que antes se dizia pelo prazer de provocar no outro riso ou indignação.

O que me diferencia de Martim e de outros ex-olavetes que pregam um Olavogedom, portanto, é o grau desse desencanto. O que, por lógica, tem a ver com o nível de expectativa intelectual e até espiritual que se nutre (ou nutria) por este ou aquele líder. Quando Olavo de Carvalho começou a figurar não no rodapé, e sim nas manchetes de jornal, ele já tinha se transformado para mim numa sereia de voz pigarrenta – menos ao estilo Billy Holiday e mais ao estilo DPOC. Eu já não precisava mais me agarrar ao mastro (!) para fugir ao encanto dele. Bastava dar as costas (!) e, sei lá, ler um livro.

Incômodo estético

Aí é que está o cerne da minha discordância em relação ao texto de Martim que diagnostica uma tragédia ideológica no âmago da direita brasileira. Eu não vejo em Olavo de Carvalho nenhum poder real, nenhuma capacidade de articulação e, francamente, nenhuma energia para pôr em prática um projeto totalitário qualquer. E, mesmo que ele tivesse essas coisas, pressupor uma tragédia intelectual significa pressupor que todos os olavetes, praticantes ou não, são manipuláveis a ponto de abdicarem de si mesmos para seguirem um Mestre.

Eu não fui assim. Martim não foi assim. Por que os outros haveriam de ser assim?

Não haveriam. Excetuando-se os loucos de praxe, e eles são muitos, chega uma hora em que as pessoas normais que constituem essa abstração assustadora a que damos o nome de “maioria” percebem que estão arriscando muito para realizar o sonho (ou pesadelo) de outra pessoa. Assim como o ladrão calcula os riscos e recompensas envolvidos num assalto, também o homem comum (enfim) calcula os riscos e recompensas envolvidos numa aventura ideológica à direita ou à esquerda.

Não vejo, portanto, na fusão entre Jair Bolsonaro e Olavo de Carvalho, à qual se deu o simpático nome de “bolsolavismo”, qualquer ameaça à democracia ou à liberdade. O que vejo é, no máximo, um incômodo estético que se revela em bravatas de boteco ou no uso inclemente de apelidos desumanizantes e de palavrões que desde o tempo de Dercy Gonçalves despertam horror e riso nos mais incautos.

Mas estou disposto a mudar de ideia caso Olavo de Carvalho, empunhando uma cópia do ótimo “O Jardim das Aflições” numa das mãos e uma garrucha na outra, um dia subir a rampa do Palácio do Planalto, de preferência montado num cavalo branco e gritando “Deus Vult!”. Até lá, escolho conscientemente a paz do velho adágio segundo o qual “isso [Olavo de Carvalho, Bolsonaro, eu e até Martim] também passará”.

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