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Como posso confiar a liberdade a uma instituição que não aguenta meia dúzia de impropérios sem consequência, ditos por um deputado irrelevante?
Como posso confiar a liberdade a uma instituição que não aguenta meia dúzia de impropérios sem consequência, ditos por um deputado irrelevante?| Foto: Lula Marques/ Fotos Públicas

Hoje, no café da manhã, conversava com minha mulher sobre a prisão do deputado Daniel Silveira, a mando do ministro Alexandre de Moraes. E dizia, cantarolando mentalmente uma música de Raul Seixas (“Eu não sou besta pra tirar onda de herói”), que pretendia escrever algo a respeito disso.

Foi quando ela tirou rapidamente os olhos do pão, que recebia uma generosa camada de manteiga, para me alertar daquela forma que só as mulheres sabem. Desviei do “pense bem!” e do “tem certeza?” e me abaixei a tempo de evitar um “não vou te visitar na cadeia, hein?”. Só para me ver abatido por um mortal “pra quê você vai se meter com isso?”.

Caí desacordado e tive sonhos intranquilos. Mas foi bom. Porque despertei do estupor do argumento mais trivial – que seria atacar a flagrante ilegalidade da prisão de um deputado federal por crime de opinião – para questionar a serventia da ordem suprema, assim como a, digamos, desserventia da medida.

Eis-me aqui agora, pois, cometendo a ousadia de escrever sobre esse absurdo que, antes de ser político e jurídico, é moral. E que nos afeta porque, vindo de um ministro do STF, nos deixa à mercê das vontades e dos caprichos de uma espécie de juiz absolutista. Um juiz-sol que, a cada decisão aparentemente tomada por uma mistura de impulso e soberba, e com a justificativa de zelar pela estabilidade democrática e pela honra da instituição, acaba por abalar a harmonia entre os poderes e a sociedade.

Para que serve a prisão do deputado Daniel Silveira

Antes de qualquer coisa, a prisão do deputado Daniel Silveira serve para botar medo nas pessoas que contam com o questionável privilégio de expor sua opinião. E, neste caso, funciona. Tanto é assim que estou aqui, medindo cada uma das palavras que escrevo. Ponderando adjetivos, advérbios e até neologismos. Avaliando, a cada frase, os custos e benefícios de minha pequena opinião.

“Deveria ser sempre assim!”, vai dizer alguém, talvez até mesmo um juiz que, não sendo o Sol, se acha estrela. E esse alguém tem certa dose de razão. Nunca é demais ter cuidado com as palavras. Mas uma coisa é se jogar de bungee jumping nesse fascinante e mítico abismo da liberdade de expressão confiando que o equipamento foi devidamente inspecionado. Outra bem diferente é se jogar preso a um equipamento corroído pelas instituições que deveriam zelar por sua conservação.

Atrelada ao medo, a prisão do deputado Daniel Silveira tem outra serventia: mostrar quem manda no Brasil. Veja bem, cada um dos 11 ministros do STF tem, hoje, um poder limitado apenas à sua própria consciência. Alexandre de Moraes e seus colegas tomam as decisões que tomam sabendo que jamais serão responsabilizados por quaisquer consequências ruins. Os freios institucionais, que nunca foram lá essas coisas, já não funcionam mais. A Constituição, já tão aviltada, pobrezinha, se transformou numa peça mal escrita de ficção.

A prisão do deputado Daniel Silveira serve, ainda, para transformá-lo em vítima e mártir da liberdade de expressão. O que acaba por legitimar um discurso baixo e pesado, cheio de xingamentos dignos de uma roda de bêbados e daquela valentia típica de quem preza mais pelos músculos do que pelo intelecto. Mas talvez isso seja próprio do nosso tempo que clama por castigo ao valentão inseguro do recreio, quando qualquer um minimamente sensato sabe que o certo a fazer é ignorar o pinscher que se acha dobermann.

Para que não serve a prisão do deputado Daniel Silveira

Por mais que o STF, sobretudo o ministro Alexandre de Moraes, queira se mostrar zeloso com a própria imagem de “casa garantidora dos direitos fundamentais”, a verdade é que a Corte está com a reputação manchada perante a opinião pública. E a prisão do deputado Daniel Silveira, por mais medo que venha a inspirar nos críticos da instituição, só ma-ma-ma-ma-cula (este sou eu tremendo) ainda mais a instituição.

Se um dia o STF voltará a ser visto como o último bastião contra o autoritarismo do Executivo e do Legislativo, não será dando ele próprio exemplos de autoritarismo explícito. Tampouco será querendo controlar o que dizem a respeito da instituição e daqueles que a compõem. Aliás, a própria preocupação com a “honra” da casa mostra que há algo de muito errado com os ministros, que deveriam estar acima de xingamentos, ameaças e bravatas feitas por um deputado do baixo clero.

Agora, se o objetivo da prisão era “proteger a democracia”, serei obrigado a abandonar o ar circunspecto deste texto para me acabar numa gargalhada daquelas bem tristes mesmo. Qualquer pessoa que tenha folheado um livro de teoria política sabe que uma das mais belas contradições da democracia está justamente em aceitar críticas à própria democracia.

Um judiciário incapaz de ouvir meia dúzia de impropérios sem relevância ou consequência não é uma instituição na qual me sinto seguro para confiar minha liberdade; é só uma agremiação de vaidades frágeis. Fragilíssimas.

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