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O pior é saber que, um dia, os adeptos da cultura do cancelamento perceberão quão insuportável é viver num mundo sem risco.
O pior é saber que, um dia, os adeptos da cultura do cancelamento perceberão quão insuportável é viver num mundo sem risco.| Foto: Pixabay

Até hoje, a cultura do cancelamento para mim era um fenômeno razoavelmente distante. Era só um bando de gente incapaz de contra-argumentar, munido de uma pretensa e falsa pureza moral e ideológica e que deseja viver num mundo imaculado destruindo a vida de qualquer um que se parecesse remotamente com um inimigo. Até hoje, quando senti a cultura do cancelamento bafejando em minha nuca ao ver um amigo ser alvo dessa que é a mais abjeta forma de fazer política.

Abjeta porque elimina do debate público duas virtudes necessária para o convívio civilizado: a generosidade e o perdão.

A generosidade, neste caso, consiste em dar ao outro a chance de se expressar da melhor maneira possível, às vezes incomodando, às vezes citando fatos para os quais não tínhamos atentado, às vezes até esfregando a realidade na nossa cara. Chegamos até aqui, a este presente incrivelmente farto de matéria e ideias, justamente porque ao longo de séculos fomos capazes de assimilar hipóteses, propor teses e antíteses e chegar a uma síntese proveitosa.

A cultura do cancelamento acaba com isso e impõe a todos a aceitação tácita de sínteses que muitas vezes nascem já prontinhas para contrariar uma hipótese, sem passar pelo crivo da tese e antítese. Em prevalecendo essa expressão contemporânea de puritanismo obtuso, haverá um dia em que nenhum homem jamais terá coragem de propor qualquer hipótese. Será a morte da ideia e a consolidação do dogma.

Haverá, sim, mártires para desafiar essa multidão que é até caricata em seu dogmatismo progressista. Gente que perderá não só o prestígio e o microfone ou a caneta, mas também o sustento, quando não a honra de andar pelas ruas de cabeça erguida, sabendo-se dono de suas próprias ideias.

Com a cultura do cancelamento, muitos outros, até por se saberem impossibilitados de arriscarem o sustento e a honra, pensarão não duas, mas dez vezes antes de defenderem uma ideia, por mais inofensiva que ela seja. Quem não cria talvez tenha dificuldades para entender, mas a autocensura é um processo psicologicamente violento, uma automutilação sem sangue. E só não vou falar mais do sofrimento envolvido nisso porque senão daqui a pouco vão dizer que estou querendo fundar uma ONG.

Além disso, a cultura do cancelamento elimina a possibilidade de se perdoar uma pessoa por um erro. Nisso ela acaba por eliminar séculos e séculos de aprimoramento do sistema jurídico. Nem a lei de talião é tão cruel. Ao cancelado não há nenhuma possibilidade de se arrepender, muito menos de se redimir.

E eu sei que o perdão não está muito em voga. O que é compreensível. Porque perdoar é dificílimo. Exige que nos coloquemos no lugar do outro e reconheçamos nele um direito fundamental de qualquer ser humano – o direito à falha, ao tropeço, ao fracasso. Perdoar também dá trabalho, porque para sermos misericordiosos temos que ir contra nossa natureza primitiva de vingança. E sabemos que essa turba obscurantista até quer o monopólio da virtude, mas desde que não precise se esforçar muito.

E tudo isso para quê? Para os canceladores descobrirem, um pouco antes de se extinguirem no processo autofágico do cancelamento, que nada é mais insuportável do que viver sem os deliciosos riscos cotidianos de atravessar a rua sem olhar para os lados e de escrever palavras incômodas.

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