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Taí uma coisa que nunca consegui fazer: manter um diário.
Taí uma coisa que nunca consegui fazer: manter um diário.| Foto: Bigstock

Querido diário,

Ontem pretendia escrever sobre você, sobre a sua importância histórica, sobre sua ausência na minha vida e sobre o seu poder terapêutico. Mas havia um Moro no meio do caminho. Além disso, pensei “quem se importa com diários hoje em dia?”. Aliás, se você estivesse mais presente na minha vida (e, se não está, é por minha culpa) saberia que muitas das minhas reflexões atuais começam com “quem se importa...?”.

Mas isso não vem ao caso. O que vem ao caso é que você é importante. Tão importante que, nestes nossos tempos narcisistas, anda esquecido. Injustamente, diga-se de passagem. Você, diário, é uma verdadeira instituição, exaltada por sábios como Sêneca e Marco Aurélio, sem falar no neoestoico Jordan Peterson. Sim, aquele. Mesmo assim, por algum motivo são poucos os que se dispõe a tirá-lo do ostracismo.

No caso da minha geração, até entendo. Manter um diário sempre foi uma coisa de menina. E de menina chata, daquelas que enchiam as agendas com papéis de bala e coraçõezinhos com o meu nome dentro. Diário não era coisa de homem, não. Homem jogava futebol ou, na pior das hipóteses, colecionava selos.

Nem sempre foi assim. A gente sabe. Grandes homens mantiveram grandes diários. De cabeça assim me ocorrem Anne Frank (óbvio!), Silvia Plath (e eu acho que Sílvia é com “y”, mas vou manter assim por teimosia), Kafka e Getúlio Vargas. Tá, eu sei que Getúlio não foi um grande homem nem mesmo na estatura, mas foi um homem importante. FHC, aquele que se apequena sempre que abre a boca para falar do Lula, também manteve um diário.

(Devo estar me esquecendo de algum nome. O que é uma oportunidade para que alguém venha apontar minha ignorância enciclopédica).

Ora, ora, ora. Mas quem sou eu para ficar falando de diário, não é mesmo, querido diário? Você sabe muito que nunca consegui manter um projeto desses. E não foi por falta de tentativa. Enfrentando a heteronormatividade, comecei meu primeiro diário ainda na adolescência. Mas nunca avancei para além da segunda página. Para um adolescente, é muito difícil refletir sobre problemas tão graves quanto a nota 9,8 em matemática ou a espinha que nasceu na ponta do nariz.

Os diários posteriores que tentei escrever fracassaram na forma e no conteúdo. Na forma porque eu os escrevia com especial atenção ao estilo, tendo em mente um leitor futuro. Patético, eu sei. Mas fazer o quê? No conteúdo porque, uma vez violada a premissa da privacidade, é claro que eu editava aquilo que, em meus delírios, se transformaria em objeto de estudo e admiração por séculos.

Aí, diário querido, é capaz de aparecer alguém para dizer que você está ultrapassado porque foi substituído pelas redes sociais. Não é verdade. Exatamente por causa da relação íntima que se deve ter com os diários. Em termos mais psicanalíticos (para soar profundo), o diário é um diálogo entre seu ego e superego. Ou seja, entre a sua porção que acerta e erra e a sua porção que explica os motivos que o levaram ao acerto ou ao erro. E é impossível ter um diálogo desses submetido diariamente ao escrutínio público.

Fico pensando em como minha vida teria sido diferente se eu tivesse mantido um diário. Talvez eu tivesse até me perdoado antes por uns excessos da juventude. Mas, extrapolando aqui meu umbiguismo, me permito pensar também em como as coisas seriam diferentes se nossos homens públicos, sejam eles políticos, atletas, artistas ou até influenciadores digitais, tivessem o hábito de manter um diário.

Nem preciso fechar os olhos para imaginar claramente um político racionalizando essa e aquela decisão – e não raro percebendo que suas motivações pouco tiveram a ver com princípios. Tampouco preciso fazer força para imaginar um desses abutres canceladores tendo de enfrentar a dura realidade que a caneta registra: o que o levou a destruir a vida de Fulano e Sicrano não tem base virtuosa alguma. É pura necessidade de aceitação.

Porque é disso que se trata o hábito de manter um diário: confrontar o tempo todo nossas atitudes e palavras, refletindo nem que seja por um segundo e, assim, criando um ritual de constante autoperdão e, com alguma sorte, redenção.

Mas por que é que estou falando isso mesmo? Ah, sei lá. Só sei que neste momento dói a mão desacostumada à caneta. E as letras saem todas tortas porque os olhos já não conseguem distinguir a linha tão bem. Hora de encerrar e, com alguma sorte, contar com a leitura daqueles que ainda se importam com uma crônica à toa.

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