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Vamos envelhecer num mundo diferente, regido por uma geração que nos parece estranha. Mas isso não é motivo para medo ou ressentimentos.
Vamos envelhecer num mundo diferente, regido por uma geração que nos parece estranha. Mas isso não é motivo para medo ou ressentimentos.| Foto: Pixabay

Fui encarregado, hoje, de pensar “que país estamos deixando para nossos idosos”. Vem bem a calhar. Primeiro porque tenho dois idosos presos em casa desde março, por causa da maldita pandemia, e depois porque já começa a me doer o ciático e, se meu joelho lateja, pode apostar: é chuva na certa.

Outro dia cometi o pecado mortal de dar de ombros para as medidas de isolamento e fui beber uma cerveja com os amigos. Aliás, outro sinal de que o país que deixarei para os idosos é também o país que deixarei para mim: a IPA não me caiu muito bem e fui para casa cedo. Tomei um chá de boldo e às 21 horas já estava dormindo.

Em meio à juventude que gozava do veranico curitibano enquanto o prefeito semipermitia perigosas aglomerações, eu olhava aquelas pessoas ao meu redor. É muito fácil cair na nostalgia e no pessimismo de que “essa é a pior geração de todos os tempos”. Armadilha que não me pegou naquele momento, mesmo que eu observasse as tatuagens que marcavam a pele de absolutamente todas as pessoas, os cabelos coloridos e aquele olhar de quem está sempre em busca de uma descarga repentina de dopamina.

Contra o ressentimento que nós, idosos, semi-idosos ou adultos dramáticos, tendemos a nutrir em relação aos jovens, tiro da carteira de couro muito velha a abrigar documentos inúteis, fotos 3x4 de quando eu tinha cabelos e uma nota de 1000 cruzeiros “para dar sorte” um papel amarrotado, já se esfarelando, para dar um tom ainda mais dramático à coisa, com a frase de um de meus escritores preferidos, Bill Bryson.

Bill Bryson, ele também um idoso e um talentosíssimo escritor de viagens (gênero não muito apreciado por aqui), resolveu refazer uma viagem que tinha empreendido pelo interior da Inglaterra quando jovem. O resultado é o deslumbrante The Road to Little Dribbling: More Notes from a Small Island [O caminho para Little Dribbling: mais notas de uma ilhota]. Para além do estilo divertido do autor, o livro se destaca por uma frase que, embora não expresse exatamente uma ideia original, cabe como uma luva (e um lugar-comum) neste texto.

No livro, Bryson está jantando com amigos e conversando, acho, sobre um programa de TV. E, como um idoso típico, ele diz ao amigo que o mundo parece estar ficando mais e mais cheio de imbecis. “Eles me explicaram que isso é coisa da idade. Quanto mais velho você fica, mais parece que o mundo pertence a outras pessoas”.

E mais parece que essas tais “outras pessoas” não estão nem aí para o mundo que você deixou para elas, não é mesmo? Daí a rabugice própria da idade. Nesse dia em que saí para conversar com os amigos, por exemplo, fiquei estudando nos mínimos detalhes o descompromisso com que esta geração que um dia cuidará da minha se trata. Todas as relações parecem incrivelmente distantes – e não, não é efeito das medidas de isolamento social. Não à toa, a meninada, como se diz, demarca o próprio corpo com tantas tintas. Talvez tenhamos nos tornado minirreinos obcecados por uma ideia de autonomia impensável para nossos pais e avós, que sabiam que precisavam colaborar se quisessem alcançar algo remotamente parecido com a prosperidade de que gozamos hoje.

Abundância & facilidade

Este é o cerne da preocupação de todo idoso, semi-idoso e um punhado de jovens que usam gravata-borboleta hoje e que sabem que um dia serão idosos: o sacrifício das gerações passadas será valorizado pelas gerações que dele se beneficiam? Para dar um exemplo claro, mas um tanto quanto óbvio, temos a Segunda Guerra Mundial. Será que a morte de milhares de jovens nas praias da Normandia pela manutenção de um mundo livre é devidamente valorizada por jovens que hoje vão às ruas depredar lojas e derrubar estátuas?

E, por mais paradoxal que possa soar, isso tem a ver justamente com o ambiente de abundância, quando não de bonança, que as gerações mais velhas nos legaram. Sem toda a tecnologia que barateou o preço dos alimentos, por exemplo, seria impensável alguém cogitar a ideia de se tornar vegano. Sem os computadores eficientes e baratos que nossos avós (sim, avós!) criaram, ainda estaríamos presos a um tempo em que a comunicação levava dias, quando não semanas.

Somos o produto de incontáveis gerações, cada qual com uma contribuição para o nosso estado de bem-estar atual. Pense, por exemplo, que há apenas cem anos os homens tinham de prender as meias às canelas usando uma cinta – porque o elástico, algo tão comum e banal hoje em dia, não era uma tecnologia disponível. Para nossos bisavós, um simples copo d’água com muito gelo e umas rodelas de limão num dia de calor era um luxo impensável.

Vivemos numa época de inacreditável abundância e facilidade. Entramos em qualquer bar e podemos escolher entre dezenas de marcas de cerveja. Reclamamos do preço do arroz, mas é improvável que venha a faltar arroz na mesa das pessoas. Vivemos, veja só, em meio a uma pandemia monstruosa, mas água quente jorra da nossa torneira. Se queremos assistir a um filme, apertamos meia-dúzia de botões no nosso controle remoto e voilà! E assim por diante.

O problema é que tamanha abundância e facilidade historicamente têm duas consequências. A primeira é a sensação de que o mundo generoso e fácil nos é assim por direito. Como não vivemos as privações de nossos antepassados, temos a sensação de que elas simplesmente não existiram – por mais que os livros de história nos digam o contrário. Padecemos da péssima mania de analisarmos um passado de muito sofrimento a partir do conforto de nossos apartamentos climatizados.

A segunda consequência é uma ansiedade primitiva de que um dia, por motivos que estão além do nosso controle, voltaremos àquele estado de escassez e privações. E há todo um mercado que tira proveito desse nosso medo ancestral, usando do pessimismo para nos vender a ideia de um futuro insuportável. Está aí o catastrofismo climático que não me deixa mentir.

Quando todos os indicadores possíveis mostram o contrário: nossa vida hoje é melhor do que jamais foi – e só tende a melhorar. Daí porque preocupações quanto a ficarmos aos cuidados da “geração floquinho de neve” não fazem parte do meu cotidiano. E não deveriam fazer parte do seu. É improvável que a comédia eugenista Idiocracy (2006) se torne realidade um dia e que venhamos a nos esquecer de todo o conhecimento acumulado com centenas e centenas de gerações.

Somos todos, até mesmo os ainda oprimidos, extremamente privilegiados por vivermos numa época em que certos valores morais, como a defesa da vida e da liberdade e a busca pela justiça, fazem parte de uma espécie de convicção coletiva. Exceções existem, claro, mas elas não passam de exceções.

Dickens e Sêneca

Quando penso, pois, no país que deixaremos para os idosos, grupo do qual espero fazer parte e finalmente poder me dedicar ao dominó e à apicultura, me lembro sempre de um parágrafo que provavelmente é o começo de romance mais famoso da língua inglesa. Em Um Conto de Duas Cidades, Charles Dickens descreve assim o seu tempo, que também é o nosso e provavelmente será o de nossos filhos, netos e bisnetos:

“Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos, foi a era da sabedoria, foi a era da estupidez, foi a idade da fé, foi a idade da descrença, foi a estação da Luz, foi a estação das Trevas, foi a primavera da esperança, foi o inverno do desespero, tínhamos tudo diante de nós, não tínhamos nada diante de nós, íamos todos diretamente para o Céu, íamos todos no caminho oposto – em resumo, aquele tempo era tão parecido com o presente que algumas de suas autoridades mais estridentes insistiam em ser recebidas, para o bem ou para o mal, apenas no grau superlativo de comparação”.

Era assim há 161 anos, quando o livro foi escrito, e provavelmente será assim daqui a 161, quando todos os que leem este texto já tiverem voltado ao pó. Teremos acertado e errado, e alguns dias parecerão mais demorados do que outros. Haverá ameaça e, por consequência, medo. Mas também haverá promessa e esperança.

De resto, deixemos os jovens com seus delírios de revolução, com a ideia ao mesmo tempo arrogante e pequena de que cabe a eles criar um mundo sem lugar para a imperfeição que ensina e enobrece. A nós, que temos nossos velhos e que já começamos a descer a montanha da vida, vale relembrar as sapientíssimas palavras de um dos homens mais sábios que já viveram entre nós, mas que nem por isso foi poupado por um jovem imperador que o condenou à morte. Com vocês, Sêneca:

“Durmamos felizes e contentes; digamos: eu vivi; o caminho que o Destino abriu para mim chegou ao fim. E, se Deus se alegrar em nos dar mais um dia, agradeçamos de todo o coração. O homem mais feliz e mais seguro de si é aquele que aguarda o amanhã sem apreensão. Quando um homem diz: ‘Eu vivi!’, todas as manhãs nas quais ele desperta são recebidas como um prêmio”.

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