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Será que Ruy Castro insistiria em sugerir suicídio (real ou simbólico) se soubesse que há tanto para corrigir dentro de si?
Será que Ruy Castro insistiria em sugerir suicídio (real ou simbólico) se soubesse que há tanto para corrigir dentro de si?| Foto: Pixabay

Foi com algum espanto, para não dizer decepção, que li a crônica “Saída para Trump: matar-se”, em que Ruy Castro diz, sem nem uma pitadinha da elegância que lhe é característica, que Donald Trump deveria se matar. E Jair Bolsonaro deveria imitá-lo. “Para o bem do Brasil, nenhum minuto sem Bolsonaro será cedo demais”, terminava o panfleto indigno do autor, mas digno do Prêmio Hélio Schwartsman de consequencialismo.

Castro (cujo bisneto fictício já figurou nestas páginas falando de funk) compara o suicídio de Trump (e, por extensão, de Bolsonaro) ao de Getúlio, que teria transformado o ditador do Estado Novo num mártir do próprio ego. Ele imagina as potenciais viúvas de Trump e Bolsonaro como as viúvas do getulismo, que ignoram as prisões, as torturas, as perseguições do fascistinha tupiniquim, preferindo exaltar feitos como a CLT e outras excrescências.

Não consigo alcançar o nível de indignação paranoica que leva uma pessoa a arriscar todo o seu legado intelectual numa crônica, a ponto de defender que um ser humano se mate com um tiro no coração (pelo efeito simbólico). O raciocínio de que a ação política e até mesmo as palavras tortas de um líder sejam mais importantes do que o ato de respirar e comer e rir e dormir é algo que me escapa. Ainda mais vindo de alguém como Ruy Castro, que sempre transbordou uma mistura de inteligência e leveza muito próxima da ideal.

O mais triste desse episódio é que, como toda tentativa de suicídio, a crônica de Ruy Castro soa como um pedido de ajuda do autor. Quer ele que o abracemos em sua indignação desesperada? Ou que nos solidarizemos com uma visão de mundo (a meu ver pequena) que põe a culpa por todos os nossos males em indivíduos que acreditamos (equivocadamente) ter um poder absoluto? Ou será que o que Ruy Castro quer é que seu desejo perverso seja realmente levado a cabo e ele entre para a história como o Homem Que Fez Fulano Se Matar?

Seja lá o que for, dá pena ler a crônica de Ruy Castro. Ao chegar ao ponto final, a sensação para mim foi a de encontrar o bom texto, aquele que antigamente colocávamos a serviço da informação, da verdade e de outros valores nobres, caído no chão, os pulsos abertos em mais uma tentativa vulgar e frustrada de estudar empiricamente aquilo que Camus chamou de o único “problema filosófico verdadeiramente sério”.

Por que ainda mantenho uma conta no Twitter

A indignação extremada de Ruy Castro, essa revolta capaz de nublar o talento e anular a graça, encontra eco no niilismo inerente ao progressismo contra o qual Trump, o Abominável, se posiciona. O curioso é que essa mesma indignação extremada é capaz de contaminar os que lutam contra o progressismo niilista. No final das contas, portanto, tudo o que resta é o desespero impotente.

Aos indignados & revoltados de plantão, irmanados nesse niilismo necrófilo, restam as palavras da escritora Etty Hillesum, a “Simone Weil judia”. Assassinada em Auschwitz com apenas 29 anos, Hillesum foi mais um entre milhões de cadáveres, produto do eugenoconsequencialismo (me deixa que acordei neologista) suicida de Adolf Hitler – aquele mesmo do bigodinho, e cuja maldade ainda está distante da do homem alaranjado ou do que fala “talquei”.

Palavras que, para o bem da minha sanidade mental nesta segunda-feira de chuva, foram compartilhadas pelo escritor Rodrigo Duarte Garcia no Twitter, em meio à eterna guerra de insultos, ameaças de debandada para o Parler e um ou outro vídeo de gatinho. Fico imaginando se Ruy Castro teria coragem de expor sua “teoria da virtude do suicídio alheio” depois de ler o que escreveu uma vítima real de crimes reais de um tirano real – e não uma vítima emocional de bazófias ditas por um bufão.

É a Ruy Castro que ofereço as palavras de Hillesum, escritas no diário que ela nos legou. Mas não só a ele. Eu as ofereço também a todos os que diariamente se descabelam diante do ícone do passarinho azul. Todos os que vivem apontando a imundície alheia (entre os quais me incluo) sem jamais refletir sobre a sujeira que se acumula todos os dias nos cantos cheios de musgo da nossa alma:

“A imundície dos outros está também em nós. E eu não vejo nenhuma outra solução, nenhuma solução, mesmo, que não seja olhar para dentro e arrancar tudo o que há de podre em nossa alma. Eu não acredito que possamos corrigir qualquer coisa no mundo exterior que não tenhamos ainda corrigido em nós mesmos. A única lição que essa guerra nos ensinou é procurar dentro de nós mesmos, e não em outro lugar”.

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