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Esses caminhos todos já trilhei usando o ridículo uniforme bordô do colégio Madalena Sofia.
Esses caminhos todos já trilhei usando o ridículo uniforme bordô do colégio Madalena Sofia.| Foto: Reprodução

Acometido por uns vapores de nostalgia, peguei o carro e fui até o velho Bairro Alto da minha infância. Aqui morava Fulano; ali, Sicrano – fui falando para minha mulher. Aqui era tudo terreno baldio; nessa descidona eu pilotava minha BMX sem as mãos. Aqui eu comprava a Gazeta aos domingos. Ali ocorreu a Grande Batalha de Mamona de 1989.

Passamos pela minha ex-casa, hoje abandonada. Quase uma ruína. Ao lado, o boteco de bêbados tristíssimos, pobríssimos e inofensivíssimos continua servindo pinga. Ali o João Preto me contava histórias de guerra. Tenho vontade de entrar e perguntar pela Jô ou pelo Zone (nome real), mas sigo adiante. Acho que não tenho nem estômago nem coragem para enfrentar a danação.

Subo por uma rua com nome de rio, viro à direita em outra rua com nome de rio. Toda uma bacia hidrográfica de lembranças. Hélio morava numa casinha azul com escada. Sempre achei chiques as casas com escadas. Um pouco mais adiante, a mansão dos Bonetti. Por que procuro por meu antigo melhor amigo no Google e não encontro resultados? Temo a resposta que, no entanto, me parece insuportavelmente óbvia.

A peregrinação pela memória continua. Barulhos e cheiros me chegam com uma familiaridade inexplicável. Ou seria fantasia? Já fui aquela criança ali. E aquela e aquela. Já passei tardes e mais tardes num porão, mexendo em tubos de ensaio, ácidos e bases, em meio a latas de óleo de soja e aranhas-marrons. Esses caminhos todos já trilhei usando o ridículo uniforme bordô do colégio Madalena Sofia – para onde me dirijo com incontestável ansiedade. As mãos suadas escorregam do volante. O rostinho de Simone (a “Turca”) me vem à mente. Com ela descobri o instinto e a perversidade.

De longe aviso o Cristo de braços abertos no alto do prédio. Faltam trezentos, duzentos, cem metros. Debaixo dessa árvore fiquei olhando Carla jogar vôlei, sem coragem de beijá-la. Nessa esquina esperava meu pai vir me pegar num Fiat 147. Ali morava a professora cujo nome me escapa, mas que ensinava Etiqueta. E ai de quem colocasse os cotovelos sobre a mesa!

Ao chegar ao portão do colégio, me lembro da última vez que ousei ultrapassar aquele umbral, há bons 15 anos já. Entrei todo garboso pela portaria que me era proibida na infância e não tive muita dificuldade para convencer a recepcionista de que precisava muito dar uma volta pelo interior do colégio. Os corredores longuíssimos, o piso vermelho, as escadas, as salas do jardim 2 à oitava série. Os draminhas que pareciam todos definitivos. E o cheiro da pizza de massa grossa e recheio farto cujo sabor de felicidade jamais consegui reproduzir.

Desta vez, porém, os portões estão fechados. Vontade de invadir a propriedade. Não é um gradil qualquer que vai me impedir de sentir a textura daquelas paredes, de subir aquelas escadas, de saborear novamente o cheiro do cano de escape da ruidosa jardineira que nunca me deixava em casa a tempo de pegar a abertura de Duck Tales. E, se a polícia chegasse, teria o maior prazer em explicar o que me levou ao gesto tresloucado.

Mas não. Sou um homem agora. Um adulto. Semivelho, dirão alguns. Dos cabelos fartos e amarfanhados da infância restam uns fiapos, se tanto. As orelhas de abano foram cirurgicamente “consertadas”. Tenho barba. Tenho mulher e filho. Tenho trabalho e responsabilidades mil. Às vezes, porém, me sinto o mesmo menino sentado no círculo desenhado no chão da sala da Tia Vanilde, ansioso por aprender a ler e a escrever. Dizem que sou livre porque não preciso pedir mais autorização para ir ao banheiro. E eu acredito. Hahahaha.

É quando vejo sentado no meio-fio um menino de seus treze anos. Ele não estava ali há cinco minutos. Ou será que já cortejo a senilidade? De cabeça baixa, o menino parece observar o incansável trabalho das formigas e não me vê. Sinto uma vontade irrefreável de me aproximar dele. À medida que vou chegando mais perto, me dou conta de que não sei o que falar. Ao me ver, ele ergue a cabeça e eu o reconheço de imediato. Ele se levanta. Me encara. Me desafia. Outra vontade, mais uma vez irrefreável, agora a de esbofeteá-lo carinhosamente no rosto imberbe.

Parto com o rosto dolorido. Se eu disser que essas lágrimas são de uma dor de que atravessou as décadas, você acredita? E para trás deixo nomes que aqui e ali me visitam em sonhos e memórias – muitas delas não requisitadas. Liliam, Leonardo e Suzane. Joacir, Franciely, Janine. Juliana, Marco Aurélio, Tatiana. Priscila, Patrícia, Bruno. Mônica, André, Carolina. Outra Juliana e dois ou três Fernandos – todo um mar de Julianas e Fernandos. Onde quer que estejam, será que estão felizes? Ou será que, coincidentemente, reservaram o dia de hoje para se lembrarem também de tudo o que poderiam ser?

E hoje vou abrir uma exceção e encerrar o texto com uma pergunta. Não vou?


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