No começo da década de 1990, as famílias ainda tinham o costume de se sentar diante da TV de tubo para acompanhar o folhetim da vez. Difícil explicar para os novinhos o tamanho da hegemonia cultural que a Globo exercia nessa época. As músicas que tocavam nas rádios eram as da trilha sonora da novela; as roupas que se vendiam nos armarinhos eram as das novelas; os penteados; o tipo de maquiagem; as gírias; as polêmicas discutidas na antessala do ginecologista ou nos bares – praticamente tudo vinha da teledramaturgia.
Os críticos sempre torceram o nariz para essa cultura popularíssima, de roteiro ridiculamente simples, interpretações canastronas e produção na base do vai-que-dá. Mas, desde que revi "Tieta" (1989), tenho dito que é possível encontrar algumas pérolas nessas obras que, sem correr o risco de soar exagerado, monopolizaram o debate público por pelo menos duas décadas. Uma dessas pérolas é o personagem Tião Galinha, criação de Benedito Ruy Barbosa em interpretação de Osmar Prado para a novela “Renascer”, sucesso absoluto de 1993.
Tião Galinha é uma mistureba de tipos populares. É meio Macunaíma e meio Sassá Mutema. Um pobre caçador de caranguejos nos mangues baianos, ele se cansa da vida na lama e sai no mundo em busca de outra ocupação. A tiracolo, leva a mulher e dois filhos. Graças a um padre, ele consegue emprego nas plantações de cacau de um coronel, que dá à família uma casa e meios de se sustentar com dignidade. E, de quebra, dá até educação para os filhos de Tião.
Mas daí Tião fica sabendo que “basta” fazer um pacto com o diabo para “enricar”. Diante da estupidez do homem simplório, José Inocêncio (Antônio Fagundes) o instrui a realizar um monte de rituais zombeteiros, entre eles “encontrar uma galinha preta virgem de galos e meninos” e “chocar um ovo debaixo do suvaco”. Daí o apelido Tião Galinha. Ao perceber que o ridículo dos rituais não demoveu Tião da ideia de fazer o pacto com o cramulhão, José Inocêncio tenta um último argumento para dissuadi-lo da ideia. “Você terá de sacrificar ou sua esposa ou um de seus filhos ao diabo”, diz, na esperança de que aquela troca seja a gota d´água até mesmo para um idiota ambicioso como Tião. Não é. E o ex-caçador de caranguejo diz que está disposto a sacrificar um de seus filhos para o demo.
Vale reparar que, apesar de dura, a vida de Tião Galinha e família está longe de ser insuportável. A vida dura e digna, contudo, não lhe basta. Ele quer ficar rico e, em vez de receber ordens, mandar nos empregados. Quer ser chamado de “coroné” e dar roupas de princesa para a esposa. Quer fazer dos filhos doutores. E, para isso, está disposto a matar um dos filhos. Ou os dois. E passar o ridículo de andar de cima para baixo primeiro com uma galinha preta e depois com um ovo debaixo do braço.
Tião Galinha representa a ingratidão do homem que, uma vez satisfeitas suas necessidades mais prementes, quer se igualar a Deus. O que passa por ingenuidade é, na verdade, soberba. E sua ambição nada tem de virtuosa, porque seu objetivo é a tirania; é o poder que se conquista por meio do sacrifício do amor (o filho, a Criação) em troca de riquezas e prazeres mundanos e finitos. Nada poderia ser mais diabólico do que isso.
À sempre evocada pergunta “como é possível que alguém vote no ex-presidiário?”, Tião Galinha oferece uma resposta interessante. Tião, como boa parte dos brasileiros, já não sabe mais o que é uma vida digna. O esforço do trabalho tampouco é visto com honradez; está mais para castigo. E para a ambição desmedida não se tem uma explicação razoável, simplesmente porque aprendemos desde cedo que a riqueza é uma coisa intrinsecamente boa, como se dinheiro desobrigasse o rico de fazer escolhas morais. E como se a fama lhe conferisse uma espécie de imortalidade imediata.
Por isso muita gente se recusa a reconhecer que vive em condições difíceis, mas ao mesmo tempo muito mais fáceis do que já viveram todos os nossos ancestrais. Por isso muita gente não vê problema em sacrificar a liberdade e a prosperidade das gerações futuras em troca da possibilidade de viver uma abundância vazia de sentido. Por isso que muita gente anda por aí com uma galinha preta debaixo do braço, indiferente ao ridículo e até ao cheiro da ave. Por isso alguns cogitam votar num ex-presidiário que insiste em lhes prometer mundos e fundos.
Ah, um último dado que talvez valha a pena constar neste texto: há trinta anos, Tião Galinha, por seu lado mais caricato e infantiloide, caiu no gosto da criançada, que via nele um joão-bobo. Quem não teve um amigo meio tanso apelidado de Tião Galinha nessa época não teve infância. Essa criançada hoje está com seus 35 a 45 anos, ocupando cargos importantes na educação, no jornalismo, nos departamentos de RH, em toda a máquina Estatal. E, claro, nos partidos políticos.
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