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Por quanto tempo ainda toleraremos a mutilação de crianças em nome do narcisismo dos pais e da ideia de que a natureza humana é tecnicamente maleável?
Por quanto tempo ainda toleraremos a mutilação de crianças em nome do narcisismo dos pais e da ideia de que a natureza humana é tecnicamente maleável?| Foto: Divulgação

Ligo para meu editor e proponho o tema e título da coluna: “Como um documentário sobre crianças trans fez minha vida girar 360 graus”. Ele ri. Diz que estou errado, que o certo é 180 graus. E fala de uma apresentadora de TV que virou meme por causa dessa suposta ignorância geométrica. Mas insisto que não. Porque acordei num ponto e, depois de assistir ao documentário, fui dormir o mesmo, mas outro. Foi o giro o que me transformou no que eu era antes, mas talvez tivesse esquecido.

Acontece e é bom quando acontece. Afinal, não é sempre que um homem tem a oportunidade (como tive ao assistir ao documentário Transhood) de revisitar todos os seus valores, todos os seus preconceitos (no sentido de conceitos anteriores à observação dos fatos) e, como bônus, avaliar e reafirmar sua fé. O documentário produzido pela HBO não é apenas um filme repugnante sobre o que pais fazem com crianças que eles, os pais, consideram trans; o documentário é, sobretudo, uma ode à arrogância do homem que, desde o mítico Jardim do Éden, jamais desistiu de querer se igualar a Deus.

E já nessa referência está um sinal da minha transformação. Falar em Jardim do Éden e Pecado Original hoje em dia é motivo de zombaria. “Lá vem o crente” ou “Lá vem o carola”. Como se acreditar num preceito religioso fundamental fosse sinal de irracionalidade, quando não de estupidez. Durante muito tempo escondi minhas raízes místicas mais profundas a fim de agradar os arautos do jornalismo esclarecido. Não mais.

Estou assistindo ao documentário e fazendo meu giro. No sentido anti-horário. Necessariamente anti-horário. Ao alcançar os primeiros 90 graus, paro uma primeira vez para contemplar o entorno. Sou tomado pela revolta, pela incompreensão, por um senso de justiça primitivo que beira o desejo de vingança. Afinal, os pais e mães retratados em Transhood são carrascos da ideologia de gênero que sacrificam os próprios filhos em nome dessa revolução que, mais do que moral, é técnica. Científica.

Chama a atenção de quem quer que assista ao filme a história de Phoenix, um menino de quatro anos que está sendo criado para virar menina. Quatro anos. Um, dois, três, quatro. Que há de ser mutilado e psicologicamente destruído para satisfazer um prazer que é evidentemente dos pais. (No caso específico, isso não acontecerá porque Phoenix "desistiu" de virar menina. Mas quantos iguais a ele não têm a mesma sorte?). E é neste momento que, tomado por uma sensação de que a vida é fado, pego o telefone e ligo para Disk Teologia a fim de tentar entender por que há almas que parecem nascer para um sofrimento que me parece insuportável. Do outro lado, porém, ninguém atende.

Meia volta

Deixo a revolta de lado e dou continuidade ao meu giro. Aos 180 graus, de costas para quem fui há meia hora, antes de começar a assistir ao documentário, me deixo banhar no lodo da impotência. E, sentindo o peso de cem mil Zeitgeists sobre meus ombros velhos e peludos, me pergunto qual a utilidade de expressar aqui a repulsa que senti ao ver Transhood. Digo, um texto é um texto é um texto, e é possível que as palavras ecoem em um ou outro leitor. Nada do que eu diga aqui, porém, mudará o fato de que crianças continuam sendo mutiladas para satisfazer o narcisismo dos pais

Tudo em nome do “amor”, da “tolerância”, da “diversidade”, da “liberdade” – palavras que ganham significados trevosos sob o guarda-chuva da “felicidade” – a cenoura mítica que impulsiona à frente os asininos. Ah, que vontade de ser sugado para dentro da televisão e perguntar àquelas pessoas como elas veem essa tal de felicidade. Será que vislumbram uma vida realmente plena depois de negarem a própria natureza e brincarem de divindade? Pior: depois de submeterem os filhos a mutilações irreversíveis, físicas e psicológicas?

Lembro-me, então, de um texto escrito pela economista Deirdre McCloskey, ex-Donald McCloskey, no qual ela narra a tragédia familiar que foi sua transição para o sexo oposto. As relações destruídas, todo um Universo de mágoa e ressentimento. A necessidade de reconstrução, a solidão da empreitada, a felicidade que nunca se alcança. E para quê? Só para bater no pé feito criancinha birrenta e dizer “Sou livre! Sou livre!”?

Com o queixo encostado no peito e os ombros caídos, continuo meu giro. São mais 90 graus, durante os quais me dou conta de que o mundo me escapa. Estou velho. Ultrapassado. Virei um reacionário daqueles que ajeita a dentadura na boca antes de reclamar com a televisão: “Esse mundão tá do avesso!”.

A “revolução trans” não é uma excentricidade criada para divertir os entediados no circo virtual contemporâneo. A ideologia de gênero está no âmago do que hoje se compreende por progresso, que é a submissão completa do homem ao seu intelecto, à ideia arrogante de que o homem pode ser Deus e transformar o mundo e a si mesmo como bem entender. Porque ele é “livre” para “buscar a felicidade a qualquer preço”.

Finalmente chego ao fim do giro. Desligo a TV, janto, me deito para dormir. A Catota sobe em mim, me afofa, ronrona e pega no sono. Lá fora passa um motoqueiro acelerando ao máximo sua máquina infernal. Sou o mesmo, mas sou outro.

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