Reinaldo Bessa

Giovana Madalosso: ovelha negra em tempo integral

12/05/2021 16:24
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Começo este perfil com um plágio assumido. Estou plagiando a mim mesmo. As primeiras linhas desta coluna foram publicadas no dia 6 de outubro de 2016 na página que eu mantinha no jornal Gazeta do Povo. Vamos a elas: “Giovana Madalosso não quis saber de panelas e polentas. Seu universo vai muito além da cozinha que fez a fama da família proprietária de um dos mais tradicionais restaurantes de Curitiba. Senhora do seu destino, mudou-se muito jovem para São Paulo, onde fez carreira como redatora publicitária de respeito, embora formada em Jornalismo pela UFPR. Hoje, aos 41 anos, coloca um pé na literatura e a estreia se dá com um livro de contos (dez no total) que chama a atenção já pelo nome: A teta racional (Grua Livros), um brado feminista que chega fazendo barulho pela diversidade de vozes do universo feminino contemporâneo para repensar padrões relacionados à mulher e até mesmo os limites da palavra mulher”.
Pulemos para o presente. Aos 45 anos, Giovana figura no rol de novos talentos da literatura brasileira após três livros lançados: “A teta racional”, de contos, e os romances “Tudo pode ser roubado” e “Suíte Tóquio”, que tem arrancado elogios de gente como a ex-candidata à Presidência da República Manuela D’Ávila e o jornalista musical Nelson Motta, além de figuras do meio artístico. Será o primeiro livro dela a ser publicado no exterior – Estados Unidos, Inglaterra e Itália, pela Europa Editions, e Colômbia e Venezuela, pela Planeta. “Tudo pode ser roubado”, que marcou sua estreia como romancista, foi finalista do Prêmio São Paulo de Literatura em 2018, ano de seu lançamento. Seu próximo livro, “Altos e Baixos”, será sua estreia no universo infantil. Inspirado nas histórias que conta para a filha Eva, de 9 anos, fala de empatia a partir de exemplos retirados do reino animal.
Primogênita do casal Neuza e Carlos Madalosso, do restaurante homônimo de Santa Felicidade, a própria Giovana se define como ovelha negra da família, uma das mais tradicionais do bairro italiano. “Com oito anos me recusei a fazer a primeira comunhão. Já enchia o saco naquela época”, conta, rindo, para completar: “Não à toa vim parar na escrita”. A mãe queria fazer uma grande festa de 15 anos num dos salões do Madalosso. O máximo que permitiu foi um jantar para 50 amigas.
Ela atribui a postura questionadora ao Colégio Anjo da Guarda, onde estudou nos primeiros anos e dividiu a classe com filhos de exilados da ditadura argentina. Mais tarde ganhou uma bolsa do Colégio Positivo por vencer o concurso literário Palavra Viva. Foi garçonete em Nova York, onde viveu um tempo para fazer um curso de roteirista, e morou em Londres até fixar-se em São Paulo.
Anti-Bolsonaro ferrenha, é simpatizante do movimento LGBT, feminista e liberal, caldo que faria corar as nonnas de Santa Felicidade. Mas Giovana sempre deu de ombros para as opiniões alheias sobre suas ideias. Inclusive as da própria família, de perfil conservador. O pai queria que ela fosse advogada. Formou-se em Jornalismo. Antes, para atender ao pedido paterno, cursou um ano de Direito e desistiu. Exerceu a profissão escolhida por pouco tempo. Boa de texto, acabou indo parar na publicidade. Passou por várias agências de Curitiba e de São Paulo como redatora. E muito bem remunerada, diga-se.
Um belo dia, já na capital paulista, onde vive desde os 24 anos, jogou tudo para o alto e decidiu dedicar-se pra valer ao ofício de escritora, para espanto dos pais, que julgaram uma loucura trocar o certo pelo duvidoso. Bateu o pé e assim foi. Hoje, três livros depois e com o reconhecimento de pesos-pesados da literatura brasileira, como os escritores Cristovão Tezza e Reinaldo Morais, mais participações em mesas-redondas na badalada Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) a família deu-lhe as mãos à palmatória. Não sem antes alguns pequenos conflitos bem à italiana.
“Passei a vida tendo embates com minha família, mas de maneira muito carinhosa. Somos uma típica família italiana, que briga e depois acaba se abraçando.”
Quando contou aos pais como se chamaria seu livro de estreia, “A teta racional”, sobre a relação de uma mulher com a maternidade, Carlos torceu o nariz. Sugeriu que ela mudasse o título, sugestão prontamente recusada. “Passei a vida tendo embates com minha família, mas de maneira muito carinhosa. Somos uma típica família italiana, que briga e depois acaba se abraçando”, diz, antes de falar que o mais recente livro é dedicado aos pais e a alguns parentes, como sua prima-irmã Anauila Madalosso, da mesma idade, com quem dividia as peripécias literárias da infância e adolescência, quando escreviam cartas e mais cartas jamais endereçadas a alguém e até criaram uma língua própria que só elas falavam. “Lembro dela sempre com um livro na mão”, diz a prima, uma de suas maiores fãs.
Mas os momentos de rebeldia tiveram alguns “escorregões” em se tratando de uma mente inquieta que desde tenra idade já pensava muito além do portal do bairro. Um deles foi quando debutou no tradicionalíssimo Clube Curitibano, atitude que considerou um mico mais tarde. O outro foi o casamento com direito à cerimônia e festa na residência dos pais para uma seleta lista de convidados da alta sociedade curitibana. Sobre o casamento, em março de 2011, diz que aceitou para pagar um tributo à suas origens. “Sabia que era importante para eles (os pais) este momento”, concede. Vive há sete anos uma segunda relação, com o publicitário e escritor cearense Pedro Guerra. Ao contrário do primeiro marido, agora é cada um no seu quadrado, faz questão de dizer, ambos no bairro de Higienópolis, a dez minutos de distância um do outro. Giovana mora com a filha em um apartamento próprio da década de 1950, escolhido pessoalmente por ela. Tem dois enteados, de 16 e 13 anos, e todos vivem numa boa no estilo os meus e os seus.
Avessa a seguir a trilha da maioria dos que carregam o sobrenome Madalosso, como seu irmão Beto, o máximo que se permitiu foi trabalhar por um curto período como hostess de um dos restaurantes do clã, o Famiglia Fadanelli. Um dia se estressou com um cliente impaciente e acabou demitida pelo pai. “Fiquei feliz. Tinha que usar blazer preto com botões dourados. Não tenho esse jogo de cintura, queria estar em casa escrevendo”, diz. Mas engana-se quem pensa que ela acha Santa Felicidade o fim do mundo. Giovana diz manter uma relação de “muito carinho e afeto” com o bairro e revela que pensa em voltar um dia. Sente saudade do frango com polenta do Madalosso e do cabrito do Fadanelli.
Pergunto se pensa em escrever um livro sobre Santa Felicidade. Ela confirma, mas ressalva que será sobre sua família, porém ficcionado. E que vai pedir a aprovação do pai ao escolher o título. “Acho que ele tem esse direito”, responde com um sorriso largo. Nos planos também está uma casa de campo no bucólico distrito rural de São Luiz do Purunã, no município de Balsa Nova, onde planeja morar no futuro. Diz amar São Paulo, mas considera que a pandemia tirou o que a cidade tinha de melhor, as pessoas. “São Paulo é cansativa, não tem verde”, afirma.
Além de escritora, Giovana é diretora da plataforma Fervura, que atua na questão do clima do planeta, e voluntária do projeto artístico Inumeráveis por meio do qual ajuda a escrever o obituário das pessoas que morreram vítimas da Covid-19 no Brasil. Os textos do projeto, muitos escritos por ela, foram lidos por atores no Fantástico. Também é colunista do jornal literário Rascunho, editado em Curitiba, e colabora com outras publicações. A pacata Santa Felicidade não seria a mesma se Giovana Madalosso ainda morasse lá e usasse blazer preto com botões dourados. Não mesmo.