Coluna

Uma vida de superações: a história do primeiro magistrado cego do país

15/12/2020 18:20
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Alto de Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. Um jovem universitário contempla da janela do seu quarto, no 8º andar, o pôr do sol paulistano com o Pico do Jaraguá incluído na paisagem limpa. Era outono de 1983. “O céu tinha um azul profundo misturado com lilás e laranja, muito lindo”, me descreve. Quinze dias depois, as luzes e cores do mundo se apagaram definitivamente para Ricardo Tadeu Marques da Fonseca. Ele perderia os 4% de visão que lhe restavam num dos olhos.
Ricardo nasceu prematuro, com seis meses de gestação, em 1959. Seu pai fez uma promessa a São Judas Tadeu que se o filho vingasse daria o nome do santo a ele. Como a mãe queria Ricardo, ganhou nome duplo. Foi o primogênito de três irmãos. Levado para a incubadora, sofreu uma lesão irreversível no nervo ótico do olho direito devido ao excesso de oxigênio. O que sobrou na máquina lhe faltou na hora do parto, causando paralisia nos braços e pernas.
Ricardo Tadeu Marques<br>da Fonseca também cultiva um amor pela música.
Ricardo Tadeu Marques<br>da Fonseca também cultiva um amor pela música.
Aos 7 anos, com o movimento dos braços readquirido, fez uma cirurgia nos tendões de Aquiles para poder andar como uma criança normal. Até então, só conseguia pisar na ponta dos pés e tinha dificuldade para ficar de pé. Por causa do problema, assistiu à Copa do Mundo de 1966 deitado na cama.
Além da deficiência visual, as pernas também foram afetadas e ele caminha com certa dificuldade. Nada que lhe tire o ânimo e o bom humor. Ricardo ri com facilidade, usa expressões como “prazer em te ver”, “vi sua matéria”. Ele sente a vida. E vibra com ela. “Eu tinha uma visão impressionista do mundo. Enxergava os contornos e cores, mas não via os detalhes das coisas. Deu pra entender o mundo”, diz, enquanto trocamos as baforadas de nossos charutos.
A baixíssima visão e, mais tarde, a falta dela não o impediram de ir longe, na vida e na carreira como magistrado da Justiça do Trabalho. Não sem antes enfrentar duras batalhas de superação. Ricardo foi alfabetizado pela mãe, em casa, porque à época as escolas não tinham método específico para alunos cegos. Ela ampliava as palavras numa pequena lousa. Ricardo nunca usou o método Braille, que considera inadequado para quem trabalha com Direito.
Como tinha um pouco de visão até os 23 anos, aprendeu a se virar sem ela. Nas sessões, decora as palavras- -chave dos processos sob sua análise para poder discutir com os colegas. “Meu gabinete é um dos mais produtivos. Sem qualquer modéstia, eu sou bom”, diz com um sorriso aberto.
Casado há quatro anos com a artista visual curitibana Ana Maria Camargo, ele tem duas filhas do primeiro casamento, Maíra, advogada e professora, e Iara, estilista, e uma neta, Maria Gabriela, de 1 ano e 2 meses, sobre quem fala com entusiasmo. “Gostaria muito de ver minhas filhas, minha neta e minha mulher. Só as vejo com as mãos”, diz.
As agruras por que passou não o tornaram um homem amargo. Nem mesmo quando foi impedido de concluir o concurso para juiz no Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, presidido por Nicolau dos Santos Neto, o famigerado juiz Lalau, que o considerou inapto para a função por ser cego, numa imoral contradição com o símbolo da própria Justiça. Ricardo fora aprovado na primeira e na segunda provas, mas antes de se submeter à terceira viu-se obrigado a passar por uma junta médica, que o excluiu do certame. “Foi uma coisa extremamente dolorosa na minha vida”, diz, num raro momento de desabafo.
Formado em 1984 na clássica Faculdade de Direito da USP, no Largo São Francisco, ele contou com a ajuda de colegas para estudar. Eles gravavam o conteúdo dos livros e as anotações dos cadernos em fitas cassete. Ainda estudante, à noite apresentava-se em bares paulistanos como músico e vocalista de uma banda de MPB e Choro. Chegou a pensar em seguir carreira, mas percebeu que não tinha disciplina para a vida de artista e optou pelo Direito. Hoje, só toca seu violão em casa e em raríssimas apresentações públicas. Depois de graduado, começava outro drama. “Nenhum escritório me deu estágio por ser cego. Então fui orientar estagiários no Centro Acadêmico da faculdade”, conta.
Decidiu fazer mestrado e com o que ganhava contratou estagiários para ler para ele. As coisas começaram a melhorar quando, indicado por um ex-colega de faculdade, foi trabalhar como assessor de um desembargador do TRT de Campinas, a quem devota eterna gratidão. Diz que aprendeu a ser juiz com o pai do amigo. E viu seu holerite engordar da noite para o dia, o que ajudou muito, porque já tinha uma filha. Estimulado pelo primeiro chefe, prestou concurso para o Ministério Público do Trabalho paulista, classificando-se em sexto lugar entre 4,5 mil concorrentes.
Exerceu a função de procurador por 18 anos e orgulha-se de ter ajudado a redigir a Lei do Menor Aprendiz, cujo maior objetivo foi conferir direitos trabalhistas aos menores. Também tem seu dedo a lei que permitiu às crianças cegas estudar em escolas regulares. Em dezembro de 2019, foi a Brasília para receber uma honraria: a Comenda Dorina Nowill que lhe foi entregue no Senado Federal no Dia Internacional das Pessoas com Deficiência. A condecoração é destinada a personalidades que tenham oferecido contribuição relevante à defesa das pessoas com deficiência no Brasil e sua inclusão no mercado de trabalho.
Outro motivo de orgulho – o principal deles – é o fato de ter sido o primeiro magistrado cego do país. Nomeado no governo do presidente Lula, que veio lhe dar posse em Curitiba, em 2009, ele entrou no TRT pelo 5º Constitucional do MPT, sendo o mais votado da lista sêxtupla. Mesmo assim, não escapou de barreiras burocráticas para assumir. Foi colocado em segundo lugar, mas contou com o lobby de amigos em Brasília, entre eles o então Advogado-Geral da União Dias Toffoli e de Clara Ant, assessora pessoal de Lula. Deu certo.
Ricardo veio para Curitiba em 2002 com o objetivo de fazer doutorado na UFPR, para o qual foi aprovado em primeiro lugar. A tese que defendeu, sobre o direito de pessoas com deficiência, o habilitou a assessorar a delegação brasileira na ONU, em 2006, na finalização do texto da convenção das Nações Unidas sobre esses direitos. Em sua homenagem, acaba de ser lançado o livro “O Trabalho decente e a reforma trabalhista”, o que o deixou extremamente envaidecido e vem lhe rendendo inúmeros convites para participar de lives e também para falar de sua experiência de vida. Sua atuação como magistrado é pautada pela defesa dos direitos humanos.
Já quase ao final das baforadas, ele me diz: “Quando alguém me pergunta se eu preferiria perder a visão ou nunca ter enxergado, digo que prefiro tê-la perdido porque conheço o mundo”. Faz sentido. Não fosse assim, Ricardo Tadeu nunca saberia descrever a beleza escancarada de um pôr do sol de outono