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A procuradora-geral Raquel Dodge e o ministro Dias Toffoli, presidente do STF. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil
A PGR Raquel Dodge recorreu da decisão de Dias Toffoli, presidente do STF, de suspender investigações e inquéritos em que haja participação do Coaf.| Foto: Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O recurso que a procuradora-geral da República (PGR) apresentou contra a decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, que bloqueou todos os processos judiciais, inquéritos policiais e procedimentos investigação criminal em que haja o repasse de dados bancários ou fiscais ao Ministério Público pelos órgãos de fiscalização e controle (Coaf, Receita Federal e Banco Central) faz corar qualquer um que se aventure por suas 45 páginas. A seguir, um resumo da lambança do presidente do STF e dos questionamentos da PGR. Depois, a dúvida que resta.

Recapitulando rapidamente: a decisão de Toffoli, que atendeu a um pedido de Flávio Bolsonaro (PSL-RJ), deu-se em um Recurso Extraordinário (RE) que corre em segredo de justiça no STF e que trata, na origem, de um crime tributário de sonegação fiscal, em que o condenado questiona suposto compartilhamento de dados sigilosos obtidos pela Receita Federal sem autorização judicial. Essa é a questão que o STF aceitou julgar. A defesa de Flávio, porém, questiona a suposta quebra do sigilo dos seus dados bancários e fiscais levada a cabo pelo Coaf – nada a ver, portanto, com a Receita Federal.

Neste ponto, o primeiro questionamento de Raquel Dodge. Investigação por sonegação fiscal, que cabe à Receita Federal, é regida pela Lei Complementar (LC) 105/2001, que estabelece as balizas para instituições financeiras fornecerem dados à Receita. A solicitação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) para que ampliasse a varredura das movimentações de Flávio é caso da Lei 9.613/98, que estabelece critérios para o Coaf enviar dados ao Ministério Público. “O juiz, em um dado processo, deve resolver a questão posta pelas partes, nos limites da lide, sem ultrapassar os termos do pedido”, escreve Dodge.

A PGR pede então para que o presidente do STF esclareça se sua decisão vale apenas para o compartilhamento de dados com a Receita, que é o tema aceito para julgamento pelo Supremo, ou se se estende para o Coaf. Nesse caso, Dodge pede para Toffoli responder “se o MP estadual pode requerer ao COAF que amplie o período dos dados bancários, sem fundamentar esta pretensão e sem ter recebido indícios de movimentação atípica, ou se, neste caso, deverá requerer em juízo quebra de sigilo bancário e fiscal”. Guarde esta informação.

Outra pedalada formal de Toffoli foi suspender investigações, inquéritos e procedimentos de investigação criminal, contrariando decisões do próprio STF. Diz a ementa de uma decisão paradigmática do Supremo: “o sobrestamento [paralisação] de processos penais determinado em razão da adoção da sistemática da repercussão geral não abrange: a) inquéritos policiais ou procedimentos investigatórios conduzidos pelo Ministério Público; b) ações penais em que haja réu preso provisoriamente”.

Nem poderia Toffoli, lembra Raquel, invocar, como ele de fato fez, o poder geral de cautela dos juízes, pois, no mesmo julgamento, os ministros do STF “negaram a possibilidade de suspensão de procedimentos de natureza extrajudicial, mesmo diante do poder geral de cautela deferido ao magistrado. Também decidiram não abranger os procedimentos extrajudiciais (investigações, inquéritos e PICs) por falta de angularidade na relação processual”.

Mas voltemos à discussão principal sobre o Coaf e a Receita Federal. Em sua decisão, Toffoli cita a jurisprudência do STF para afirmar que “o acesso às operações bancárias se limita à identificação dos titulares das operações e dos montantes globais mensalmente movimentados, ou seja, dados genéricos e cadastrais dos correntistas, vedada a inclusão de qualquer elemento que permita identificar sua origem ou [a] natureza dos gastos a partir deles efetuados, como prevê a própria LC nº 105/2001”.

Acontece, porém, como lembra a PGR, que “A LC 105/2001 [...] aplica-se, expressa e claramente, apenas às situações em que instituições financeiras transferem dados bancários à Administração Tributária (ou seja, a Receita Federal)”. Nada a ver com o Coaf. Além disso, Dodge lembra que na decisão do STF que sedimentou essa jurisprudência “não se tratou em momento algum da transferência de dados fiscais e/ou bancários por órgãos de fiscalização e controle (como o Coaf e a Receita Federal) ao Ministério Público sem prévia autorização judicial, e muito menos das ‘balizas objetivas’ para que tal transferência ocorra”.

Essas balizas objetivas que Toffoli colocou em sua decisão, repetindo o texto da LC 105/2001, são duas: (1) a identificação dos titulares das operações e (2) dos montantes globais mensalmente movimentados quando a informação bancária for compartilhada. Aí está o nó da questão: para fins de identificação sonegação fiscal, o titular da conta e o tanto de dinheiro que ele movimentou por mês, totalizando o ano, são suficientes. Basta imaginar alguém que declare rendimentos de 50 mil reais em um período, mas movimente 5 milhões nesse mesmo período. Não faz diferença, nesse caso, se o dinheiro passou fracionado pela conta em 1.000 depósitos diferentes, em espécie, ou por transferência bancária.

Mas, lembra a PGR, “sob o ponto de vista da lavagem de dinheiro, é crucial o detalhe de que ocorreram diversos depósitos fracionados ao longo de duas semanas, de sorte que a mera informação sobre ‘montantes globais mensais’ seria inócua para fins de identificação da prática de lavagem de dinheiro”. Identificação esta, é bom lembrar, que ajuda a elucidar não só crimes de lavagem, mas também de tráfico de drogas, de pessoas (especialmente mulheres e crianças para prostituição) e quaisquer outros ligados ao mercado negro.

“São estas operações suspeitas que devem ser comunicadas ao COAF pelas pessoas legalmente obrigadas, em informe que deverá registrar todas as informações necessárias a demonstrar a suspeição [destaque no original]”, escreve Dodge. “Esta comunicação não fornece extrato completo de operações financeiras de determinado cliente, mas dados bancários de contrapartes e situações atípicas, pela magnitude, localização ou frequência, que apresentam indícios de envolverem recursos provenientes de atividades ilícitas [destaque no original]”. Mais uma vez: guarde essa informação, porque deixarei uma pergunta ao final com base nela.

Portanto, um relatório padrão do Coaf contém informações mais detalhadas sobre depósitos e movimentações que a simples identificação do titular da conta e o total de dinheiro movimentado. O pedido de quebra de sigilo continua sendo necessário para acessar o extrato completo, outras transações que não foram consideradas suspeitas, mas podem fazer parte do rastro do crime, os documentos dos depósitos, cruzamentos com outras contas e também para o que o que se chama de "sequenciamento": a origem e o destino completos do dinheiro.

Saindo da esfera estritamente jurídica, Dodge lembra ao presidente do STF que esta forma de trabalho do Coaf vem sendo estruturada há mais de 20 anos, de acordo com padrões internacionais e com a legislação nacional. A regra que Toffoli inventou, além de levar à “inefetividade dessa engrenagem e, assim, ao enfraquecimento do combate à lavagem de capitais”, vai acabar abarrotando o Judiciário – foram 1.646 comunicações de operações suspeitas por dia, no ano passado –, e levando os investigadores a pedir a quebra de sigilo de mais inocentes, já que seria a única maneira de ter acesso a dados úteis, mesmo preliminares.

Por fim, a PGR argumenta que as recomendações internacionais que o Brasil segue são vinculantes no plano internacional, por força de decisões do Conselho de Segurança da ONU, e que a regra de Toffoli levará o Brasil a “descumprir os padrões internacionais de combate da lavagem de dinheiro e financiamento ao terrorismo e tornar provável a inclusão do Brasil com um país non compliant [não cumpridor] das Recomendações do GAFI, já na avaliação agendada para início de 2020”, o que pode ter como consequência, entre outras, a exclusão do Brasil “do GAFI e de outros grupos internacionais engajados no combate à lavagem, tais como o G-20, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial”.

Mas e a Constituição nisso tudo? O recurso que Dodge apresentou são embargos de declaração, que têm como objetivo resolver omissões, contradições ou obscuridades. Na prática, ela está dando uma chance a Toffoli de rever a decisão, antes que a PGR decida qual recurso de mérito apresentar. Nesse ponto, ainda resta a dúvida de fundo: qual a abrangência, afinal, da garantia constitucional do sigilo bancário?

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