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A epopéia bíblica de Pai Lula
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Lula é o candidato do regresso. Mais: Lula promete um retorno ao passado glorioso — este, um dos pressupostos básicos da tal “alt-right” — através da construção de uma candidatura plácida, estática, um sinal imutável de um tempo bom que pode voltar. Por mais que Bolsonaro tente, a verdade é só uma: o reacionário aqui veste vermelho e tecla 13.

A provocação soa estranha, mas o mote da campanha do petista — a picanha, o emprego, a celebração — remetem cuidadosamente para um imaginário lúdico, distante de missões históricas e destinos manifestos; miram, antes de tudo, a memória afetiva — concreta — de 15 anos atrás, período que o Brasil atravessou com Lula presidente e números consistentes de crescimento econômico. 

O passado idealizado pelo petista faz sombra ao presente de Jair Bolsonaro. Em meio ao desemprego, às incertezas, a uma pandemia insistente e um governo absolutamente aparvalhado, Lula propõe o regresso material a tempos em que o Brasil despontava como possível potência econômica; a tempos em que o chefe de estado tupiniquim era bem quisto e “respeitado” pelos seus pares na comunidade internacional. Há um elemento de auto-estima embutido na tese do operário: você será mais feliz, comerá mais carne e será mais respeitado. Basta confiar no papai Lula.

A proposição se reveste de contornos bíblicos quando completada pelo “pecado original” — a traição de parte do povo brasileiro ao messias Lula através do “golpe parlamentar de 2016”, passando pela sua prisão injusta nas mãos de um juiz parcial e a eleição do capeta em pessoa para a presidência da República. O brasileiro mordeu a maçã, provou do pecado, foi expurgado do paraíso. A terra por onde corriam rios de cachaça e picanha secou. Vivemos tristes e derrotados, traidores que fomos daquele homem que sofreu pois nos amava demais.

Lula, porém, foi ao inferno e voltou. A ida à prisão, barriga da baleia para nosso Jonas do ABC, serviu apenas para torná-lo mais convicto de seu propósito. Sem vinganças, tratou de acenar ao povo que tanto estima prometendo nada além do retorno ao Éden, acolhendo inimigos históricos, como o cramunhão paulista Geraldo Alckmin, e prometendo a Pax Lulista num mundo sem polarização, direita, ruas e manifestações. O paraíso é uma eterna certeza, não há razões que justifiquem oposição. Lula precisa ser unânime. 

Para o reecontro com o passado, porém, pai Lula demanda um sacrifício do seu povo: exige a confissão de culpa pelo pecado cometido; demanda um arrependimento sincero por essa estranha busca prometeica por conhecimento através das redes sociais; propõe um gostoso e confortável regresso ao status de criança, irresponsável pelos próprio atos mas cuidadosamente amada e protegida pelo seu pai, nosso Senhor Luís Inácio. Apenas assim voltaremos a ser queridos, felizes, atendidos. Nosso churrasco será mais gordo, nossos gols mais frequentes, nosso noticiário mais alvissareiro. Os bons tempos voltarão.

A narrativa petista é forte e convincente, justamente, por encontrar eco na psique do brasileiro através do paralelismo com uma história universal, perfeitamente inteligível e emocionalmente tocante. E perceba: seu sucesso não dependeu apenas da ação política e estratégica do partido, especialmente na anulação das condenações no STF e no vazamento das conversas da turma da Lava-Jato. Contou também com o fracasso abissal do governo Bolsonaro, e com a incrível capacidade do atual mandatário de parecer ruim, vil, egoísta e insensível, encarnando o coisa-ruim com tamanha fluência que por vezes eu acredito haver , de fato, um pacto com o dito-cujo.

Existem, porém, furos narrativos que podem levar sua história a pique. O primeiro, mais óbvio, é que Lula foi preso por crimes que de fato existiram. A roubalheira bilionária que liderou no país, goste ele ou não, é reconhecida como verdadeira, e a confissão de que tudo era “ilusão” ou “mentira pura” passa também pela assunção de que a classe política brasileira não é corrupta, lenda difícil demais de ser engolida pelo eleitor. Além disso, o Éden lulista curiosamente apaga da história os tempos de Dilma Rousseff, sua sucessora e “filha política”, responsável pelos terríveis anos entre 2013 e 2016, carregados de crise política e econômica. Dilma é cadáver político a ser desovado na Baía de Guanabara . Ninguém precisa ver, ninguém precisa entender — apague-se! —, finja que não existe.

Lula, até agora, vem obtendo sucesso na imposição do seu reacionarismo da picanha, pois seus adversários mais óbvios, Moro e Bolsonaro, são personagens passivos na narrativa imposta pelo ex-presidente. Não à toa, a rejeição de ambos é altíssima, como demonstram as pesquisas. Bolsonaro, por um lado, cumpre o papel de Canhoto e não entregará recuperação econômica que ofusque o passado do petista; Moro, de outro, não consegue destruir — por ora — o papel de “juiz parcial” na fábula de Lula. Houve, na última quarta-feira, uma reação por parte do juiz, tratando Lula como “canalha”. A excessão, porém, precisa virar regra para que tenha o efeito pretendido.

Caso não desmontem o enredo do ex-presidente, seus oponentes nos entregarão, nas eleições, mais que uma derrota política: confirmarão nas urnas o desfecho para a epopéia de Luís Inácio, o homem que foi ao inferno e voltou, o “There And Back Again”, que justificará, sem oposição, o projeto hegemônico de poder da esquerda brasileira. Os danos de tal derrota, amigos, serão muito maiores e duradouros que os efeitos de seu governo. Serão marca fatal na alma do brasileiro.

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