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Chile em Chamas
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Gosto das imagens que guardam uma aura simbólica. A militante de braços abertos na Igreja em chamas é uma delas. O contraste não poderia ser mais eloqüente: a militante revolucionária celebrando triunfalmente a sua revolta enquanto as imagens de santos ardem numa pira incendiária cujo estopim foram os protestos no país. É o caso de pensar se o Chile inteiro já não está sendo incendiado com o ímpeto do seu povo, que na Plaza de La Dignidad também queimou, simbolicamente, a constituição passada.

Com uma vitória esmagadora e ampla representação, o plebiscito para uma nova constituinte congregou 14 milhões de cidadãos chilenos, dos quais 78,12% votaram pela criação de uma nova constituição. O resultado mostra o fato incontestável: a maior parte da população chilena quer uma alternativa ao reformismo capitalista que fez do Chile o país latino-americano com maior IDH do continente (0,847). Parece uma insanidade, e talvez seja, mas, sem dúvida, tem a chancela do povo. Vox populi, Vox Dei? Nem sempre.

A população chilena escolheu estabelecer uma nova constituição para livrar-se dos últimos resquícios do legado de Pinochet. A antiga Constituição Chilena, entretanto, embora criada em 1980 em plena vigência da ditadura, foi expurgada de seus dispositivos mais autoritários em reformas sucessivas, a saber: foram retiradas a limitação do pluralismo político-partidário e a possibilidade de nomeação de senadores eleitos pelas forças armadas e pela suprema corte.

Não é, portanto, o autoritarismo concreto da constituição que pesou na reivindicação, mas o papel subsidiário atribuído ao Estado para manutenção dos mecanismos de seguridade social, assim como, de outra parte, seu caráter “simbólico”. Os protestos contra o governo Piñera, marcados por violentas convulsões sociais, tem um sentido ideológico claríssimo: são protestos contra o liberalismo, organizados pela esquerda a partir da subida de tarifa do metrô. Alguém se lembra do Movimento do Passe Livre e seus vinte centavos? Pois é. O Chile teve sua versão bem sucedida.

A nova constituinte será formada com os deputados eleitos em onze de abril do próximo ano. Uma das peculiaridades mais originais da constituinte, que me chamou a atenção, é que ela é a primeira constituinte paritária da história. O que significa essa expressão? Significa que, pela primeira vez, a constituinte obrigatoriamente terá 50% de mulheres entre suas autoras. A novidade é celebrada como glória da igualdade de gênero por uma das líderes da “Revolución”, Gael Yeomans, cuja primeira palavra na descrição do seu twitter oficial indica o tipo de deputada que provavelmente será eleita para elaborar a nova constituição chilena: “feminista”. Tudo com a anuência do povo, é claro.

Viajando do Chile para a Bolívia, vemos o retorno triunfal do partido de Evo Morales, o Movimento ao Socialismo (MAS), através de um quadro histórico do partido, o ex-ministro da economia, Luis Arce. Ele venceu no primeiro turno, ao passo que seu principal concorrente, Carlos Mesa, teve apenas 28,83% de votos. O fracasso do governo de transição, liderado por Janine Añez, abriu margem para o retorno do MAS aos poder. Mais uma peça no xadrez da América Latina foi capturada pela esquerda.

Chile, Argentina, Bolívia, Equador - que arde em protestos. O movimento político na América Latina tem uma direção consistente. Essa direção é a retomada do espaço perdido pela esquerda.

Durante muitas décadas a esquerda se rearticulou no continente latino-americano, através de instituições comuns que lhe propiciavam o diálogo mútuo. Foi a época da ascensão do Foro de São Paulo, fundado em 1990, cujo nome foi popularizado entre nós por Olavo de Carvalho. A despeito de certo exagero na avaliação da esfera de ação do Foro, que frequentemente aparecia como um mastermind oculto por trás das cortinas a tudo comandando (até o MBL, imagine-se!), o Foro de São Paulo de fato existe. E de fato foi um ponto de encontro, de diálogo e de formação de consensos para a esquerda latino-americana estreitar sua comunicação. É um centro estratégico de uma vitoriosa tentativa de tomada de poder, que se espalhou entre diversos países gerando um manto vermelho na América do Sul.

Contudo, pareceu haver uma reversão nessa tendência, nos anos decisivos que conheceram a eleição de Macri, Bolsonaro, Sebastian Piñera (um centrista), e que também viram a fraude eleitoral de Evo Morales ser sustada com o subsequente governo de transição. Essa avaliação, infelizmente, já parece demasiado otimista, na medida em que a rearticulação da esquerda e suas sucessivas vitórias se dão hoje. O que efetivamente ocorreu talvez tenha sido um parêntese mal articulado, onde a direita pensou, supôs, imaginou que a hegemonia de esquerda na América Latina estava se dissolvendo.

Mas ela não está. O Brasil que se prepare.

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