• Carregando...
Morte e racismo no país de Felipe Neto
| Foto:

De cancelamento em cancelamento, rumamos ao precipício. É batata: toda semana assistimos um novo julgamento sumário, um novo sacrifício no altar do politicamente correto. Diria Andreazza que “há método”, mas prefiro crer que há processo; esta é a forma como a nova moral da “gente fina, elegante e sincera” se impõe perante a massa de desavisados. É fenômeno quase inexorável.

O drama da semana foi a morte no Carrefour. Não serei eu a negar a truculência e a desproporcionalidade na abordagem dos seguranças. Mas vaticinar — de plano — que se tratara de “mais um caso de racismo estrutural” me pareceu um pouco demais. Quem o fez tinha noção das circunstâncias? Tinha ciência de todo o ocorrido — da temporalidade, do histórico, das imagens? Os Felipes Netos da vida, os cidadãos de bem do amanhã, já tinham seu veredito. Só nos restava aceitar sua tese.

Desavisados como Davi Alcolumbre já dispararam sua boa vontade no Twitter. O presidente do Senado, rapaz limitado no entendimento das coisas, parecia especialmente envolvido no combate ao “racismo estrutural”. Decerto possui críticas ásperas à atuação da sempre valente polícia militar do Amapá; será que não há “racismo estrutural”nas plagas de seus aliados políticos? Ele não sabe. Provavelmente nem redigiu seu Tweet. Mas é assim que as coisas se encaminham: para receber Huck ou Ciro, o DEM de Davi se adapta ao Golias do politicamente correto.

Em 24 horas alguns fatos vieram à tona; a vítima havia agredido uma mulher, possuía extensa ficha corrida pelos mais diversos crimes e — pasmem — iniciou a agressão contra os seguranças do supermercado. Vejam, já afirmei anteriormente que estes se excederam; mas não é possível afirmar que este homem morreu “por racismo”. Não havia ali um George Floyd em potencial. Era um criminoso, agindo de forma violenta, sendo alvo da já costumeira truculência de seguranças privados. Vivemos em um país violento, ninguém nega este fato. Negros, pardos e brancos se matam aos montes.

É o caso, por exemplo, de Allan Guimarães Pontelo, jovem de 25 anos que foi espancado até a morte em Belo Horizonte por seguranças de uma casa noturna. Allan era branco, e sua morte não motivou revolta ou grandes reflexões. Ele também foi asfixiado até não poder respirar mais; ele também foi alvo de uma desproporção. O que motivou a atuação irresponsável dos seguranças não foi uma teoria sobre raças tornada consenso pela imprensa: foi o despreparo e a cultura de violência que atravessam nossa sociedade de ponta a ponta.

O caso de Allan não se encaixa no “pacote” político que varre as redes sociais. Esquecê-lo é parte de um projeto de país — aquele que ressignifica a violência e a barbárie brasileira sob novos termos. Esqueçamos a violência urbana, o tráfico de drogas, as mortes aos montes: tudo agora é racismo e feminicídio. Tudo deve ser convertido em jurisprudência, voto e bancada do PSOL na Câmara dos Deputados. Gente continuará morrendo, leis continuarão antiquadas, a polícia continuará pouco equipada. Nada irá mudar sob o sol de terra brasilis. Mas a lacrada será linda, ah como será!

No país de Felipe Neto, estaremos permanentemente indignados sob os termos de sua moral. Seremos validados e cancelados mediante o tribunal das redes, e vamos sorrir e chorar de acordo com seu humor. É o país dessa gente histérica, que não guardou seu moralismo na igreja para poder gastá-lo no Twitter. É terra de político malandro, que se adapta ao novo vocabulário para surfar nas circunstâncias sem ruborizar.

Contra eles há resistência, mas em termos. Há um governo federal que jura “enfrentar isso aí”, mas que se perde nas próprias contradições. Mais: seu grupo político, tosco e manipulador, serve como catalisador para os argumentos dos adversários. As eleições municipais já provaram que o cidadão comum — este que Bolsonaro adora invocar — não se alinha às suas loucuras e paranóias. Prefere se entregar aos consensos da imprensa a abraçar o extremismo do presidente. A cada declaração do mandatário, mais um “brasileiro de bem”cai no colo do adversário. É de se esperar que cresçam e prosperem.

O cultura brasileira é essencialmente iconoclasta e contestadora. Fazemos piadas de tudo — de santos a pecadores, de reis a sacerdotes. Nada sobrevive à incrível capacidade do brasileiro de esculhambar aquilo que é formal, sagrado, inconteste. Não será diferente com essa nova moral ridícula que aterrisa por aqui. Diferente dos puritanos da América, gente de outra natureza, creio que o brasileiro possui anticorpos contra essa pandemia da alma. É o que me dá esperança diante do quadro de insanidade que se avizinha.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]