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O Cavalo do Presidente ou Absurdo em Tempos de Bolsonaro
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Terça-Feira, 3 de Maio, Senado Federal. Conforme seu depoimento ganhava fluidez, o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta trazia detalhes insólitos do gabinete de crise que nos administrou durante o início da pandemia. Entorpecidos pelo circo reinante, o brasileiro comum deixaria passar, despercebido, o absurdo que se tornou regra em tempos de Bolsonaro. Mas o absurdo não muda de natureza mediante o torpor de sua vítima. Ele é surreal e assim permanecerá, teimoso que é, não importa os esforços dos microfones da nova era. 

Me lembro que ri, quando criança, da nomeação de Incitatus, cavalo de raça, ao cargo de Senador pelo imperador Calígula. “Ah esses romanos!”. “Os antigos eram muito loucos!”. Pobre Renan. Não tinha ideia do que lhe aguardava. O que faria Incitatus caso nomeado fosse ao cargo de ministro da Saúde ou conselheiro do presidente da república? Relincharia? Galopearia pela sequidão das planícies de Brasília? Mataria a sede no espelho d’água do Congresso? São hipóteses plausíveis. Inofensivas, diria.

Incitatus não tentaria alterar a bula da cloroquina para enganar pacientes desesperados. Haveria discussões sobre seu desempenho nas redes sociais, mas creio ser um problema menor diante da sabotagem às vacinas e da política oficial de estímulo às aglomerações. Ele não daria a mínima para a eficácia Sputnik ou da CoronaVac. É só um cavalo. Por isso mesmo, creio que o tema da ivermectina seria especialmente sensível aos seus interesses, e não imagino o quadrúpede sugerindo uso outro além do combate a vermes e parasitas. 

Onde a imaginação me leva, a comparação entre Incitatus e o governo federal me parece bastante favorável ao cavalo. Bolsonaro está mais para Nero do que Calígula, ainda que o imperador de Incitatus possua origem militar como nosso presidente. Ajuda a comparação, também, a demência durante seu reinado,  bem como a fome e desgraça resultantes de sua administração. Entretanto, não há nada que desabone o cavalo. Sua legislatura, na pior das hipóteses, foi irrelevante.

Fica difícil justificar a superioridade do governo Bolsonaro quando percebemos que seu Incitatus particular, o filho Carluxo, é muito mais ativo e cheio de ideias que sua contraparte romana. O desprezo pela coisa pública do cavalo, mais afeito ao trote em pastos verdejantes, combina com a dedicação de Carlos ao seu mandato municipal. Mas as semelhanças terminam aí. O cavalo de Jair é especialmente interessado na condução do governo federal, tomando frente, fogoso em sua loucura, de iniciativas de sabotagem ao próprio povo que fariam até Nero corar.

A rebelião contra o bom-senso, vista como estratégia para concentrar poder, custou caro ao presidente. Como mostra o depoimento de Mandetta, Carlos assumiu papel de conselheiro maior do presidente, articulando o mix de negacionismo com cloroquina que fez do país o pior caso global de combate à pandemia. Perceba: um cavalo — cavalo mesmo, com pata e crina — não sustentaria a tese de que sabotar vacinas seria bom, visto que justificaria a continuidade do auxílio emergencial e a permanência do estado de crise. O cavalo nada faria, pois é só um cavalo. 

(Sei que minha abordagem soa por demais favorável a Incitatus, mas são quase dois milênios de injustiça com o animal. Qualquer comparação com o filho do presidente deve ser colocada em perspectiva, reforçando as habilidades e deficiências de cada um. Acusem Incitatus de tudo. Negacionista, jamais! Mentiroso, manipulador e destruidor de reputações, tampouco. Incitatus — os relatos históricos são poucos, mas certeiros — era um cavalo, e assim permaneceu. Fosse um burro ou jumento, sua conduta poderia ser outra. Mas não é o caso.) 

Na manhã desta quinta feira (6), o vice governador do Amazonas, Carlos Almeida Filho, afirmou à imprensa que o atual mandatário Wilson Lima, em parceria com Bolsonaro, resolveu fazer de Manaus um campo de experimentos da tese da “imunidade de rebanho”. É isso mesmo: a capital que mais sofreu com as consequências da pandemia, a ponto de ficar sem oxigênio, foi — conforme o relato — tratada como gaiola de cobaias para as teses de Jair, seus filhos e ministros.

Lembremos: foi em Manaus que a manifestação “anti-Lockdown” (nunca houve Lockdown por lá) aconteceu, estimulada pela presidente da CCJ Bia Kicis e o filho Eduardo Bolsonaro; foi lá que a Miss Cloroquina, médica irresponsável apaixonada pelo presidente, “nebulizou” o remédio mágico em pacientes que depois faleceram; foi lá que oxigênio faltou pois Pazuello — ministro e “especialista em logística” — preferiu receitar vermífugo como tratamento precoce. Mengele resolveu passar férias na Amazônia?

Percebam: a estratégia de negação, as teses conspiracionistas, o desprezo pela vida alheia, todos, perfazem uma visão de mundo que não é aleatória nem surgiu do nada. Esta é, antes de tudo, parte fundamental da cantilena da nova direita americana e europeia, fonte de água mineral onde o bolsonarismo ideológico mata sua sede de absurdos. Carlos Bolsonaro, tal qual cavalo, é conduzido pelos comandos de seus adestradores, de Olavo de Carvalho a Filipe G Martins. E tem espaço pois seu pai, como vemos, é também domado por essas figuras. 

O absurdo brasileiro é mais absurdo que o absurdo romano. Incitatus foi feito ministro, mas nunca deixou de ser cavalo. Carlos Bolsonaro e seu pai, por seu turno, foram feitos conselheiro e presidente, mas perderam sua humanidade de tal forma que nem homem nem cavalo podem ser comparados àquilo que se tornaram. Monstro e aberração seriam termos mais precisos. Nem bicho age dessa maneira — quiçá um cavalo, amigo do homem comparável ao cachorro.

Creio que Incitatus pode descansar em paz após a ascensão de Bolsonaro. O absurdo de seu cargo fez-se pequeno em tempos de Carluxo e cloroquina. De agora em diante, ele é apenas um cavalo. Só isso. E cidadão de bem algum vê razões que desabonem a memória de um cavalo.

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