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O Fantástico Mundo de Jair
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Às vezes, penso eu, estamos presos num filme de ficção. Nossa agricultura depende da China para manter a balança comercial; nosso presidente vive de atacar o gigante oriental. Líderes de todo o mundo receitam isolamento e acalmam seu povo; nosso presidente sai pra tomar sorvete e anuncia fome e desgraça. Parece que o Planalto opera em outra sintonia, descolado da realidade.  Seria método?

Jair não é desse mundo. Nosso presidente não parece ocupar o mesmo plano existencial, de carne e osso, onde decisões reais precisam ser tomadas e vidas de pessoas precisam ser salvas. Seu senso de urgência obedece um código muito próprio, em que prioridades nada tem a ver com a realidade fática e se resumem, ao fim de tudo, em linguagem narrativa.

Tentarei ser mais claro: Jair e seu entorno acreditaram tanto na linguagem política que os elegeu — seus memes, seus aliados, seus inimigos —, que passaram a viver em um universo particular; nada parece demovê-los de suas crenças mais insanas, que deixaram de ser ideologia para configurar um mundo próprio que só faz sentido para o governo e os seus.

No mundo de Jair, ele venceu as eleições com mais de 70%, posto que é “povo”. E o que é “povo”? São as pessoas que, crê Jair, pensam como ele: gente politicamente incorreta, que não confia nas instituições, quer bandido morto e por isso “ama o Brasil”. “Povo” também são aqueles que participam de suas manifestações e, anos atrás, o recebiam efusivamente nos aeroportos pelo Brasil.

E quem não é povo? No mundo de Jair, o “anti-povo” é o establishment, termo vago que cabe qualquer coisa. A alcunha pode ser trocada por comunista, quando necessário. Globo, PT, PSDB, NOVO, Congresso, ONU, MBL, e eventualmente você, lendo este texto, são establishment. Seu objetivo é impedir que o “povo” realize seu destino, que só pode se materializar mediante a ação política de Jair. Estar contra Jair, portanto, é estar contra o “povo”. É assim que as coisas operam.

Como em qualquer boa ficção, Jair trabalha com amuletos mágicos. Sua solução para os problemas reais passa sempre por um elemento químico ou substância com poderes especiais que transcendem sua função original. O Nióbio, por exemplo, é mais do que um minério usado em ligas especiais: é a riqueza que levará o Brasil à sua libertação. O grafeno tem função similar, com o acréscimo de criar, do zero, uma indústria de alta tecnologia no país.

Seu talismã do momento é a hidroxicloroquina: mais do que remédio para a malária — ou mesmo tratamento para o Coronavírus — , a droga permite a Jair eliminar a possibilidade de quarentena e “seguir o jogo”,  a despeito da pandemia.

É importante entender esta dinâmica, pois em quase todos os mitos o amuleto ou talismã é objeto de um roubo — ou posse ilegítima — demandando a ação de um herói que empreenda o seu resgate. Do Cálice sagrado das lendas arturianas à Lança de Longino, que perfurou Jesus; da Pedra Filosofal, que garantia a vida eterna, à Arca da aliança, tesouro dos hebreus: a humanidade é repleta de dramas como este, que servem de fio condutor para narrativas milenares e essenciais.

Jair trabalha neste campo. Convida a todos brasileiros de bem — o povo — a participar de sua luta pelo novo talismã mágico, a hidroxicloroquina. O remédio, porém, está impedido de realizar sua proeza por conta da perfídia dos inimigos do povo: os governadores, a OMC, os centros de pesquisa, a China, o ministro Mandetta. Cabe a Jair, enquanto presidente, liderar uma luta narrativa contra seus inimigos para que a cloroquina possa ser usada e, como num passe de mágica, salve todos os brasileiros do mal iminente.

Conforme descrito no monomito de Joseph Campbell, Bolsonaro encontrará tutores e aliados pelo caminho. Donald Trump e Olavo de Carvalho são seus mestres; seus deputados e prosélitos em redes sociais seus companheiros. Até eventuais médicos, como arautos dos poderes mágicos do amuleto, surgirão no caminho anunciando o sucesso inevitável da empreitada.

Muitos se solidarizam com a luta do herói e juntam-se a ele enquanto seu exército. Eles estiveram nas ruas pregando o fim do isolamento e desafiando as grandes víboras estaduais — especialmente o boneco-demônio João Dória e seu juiz-traidor Wilson Witzel. Buscam emular a valentia de seu paladino, encarando o vírus de peito aberto, expondo-se ao risco que a gripezinha representa. Alguns morrerão, como a dona Lúcia Dantas. Mas todos viverão esta aventura como a guerra de suas vidas, embevecidos pelas delícias de serem personagens da própria história.

Nesse sentido, Bolsonaro e família atuam como “mestres” de um RPG. Um jogo — nada além disso — que tem a realidade como pano de fundo, mas que se realiza em uma meta-realidade muito especial. E vejam: a cadeira de presidente da República é usada para isto — criação de narrativas — e quase nunca para ações concretas, que ficam restritas a alguns de seus ministros e aos demais poderes e entes federativos.

Todas as “ações” do presidente se dão neste campo. Não à toa, investe-se mais em postagens no twitter e coletivas com admiradores do que em articulações de reformas ou ações efetivas de governo. Seus pronunciamentos em rede nacional quase nunca anunciam nada; servem apenas para oficializar os próximos passos narrativos — ataques a governadores, compra de “insumos” junto ao rajá indiano, etc —, que de concreto possuem muito pouco. Mesmo suas insinuações são vazias, como as provas da "eleição fraudada" ou a demissão do Ministro Mandetta. Fazem sentido apenas em seu tabuleiro retórico.

Bolsonaro impressiona pois é mais que um manipulador de sentimentos. Forjado coletivamente por seus seguidores, o político de baixo clero que ascendeu a presidente é também vítima do mundo que o criou. Jair acredita em suas narrativas — o que as torna ainda mais verossímeis para a grande população. O perigo dessa gigantesca ilusão é que em algum momento ela se chocará com a realidade, reduzindo-se a pó diante dos dramas reais que se avizinham com o agravamento da crise.

Aí, então, saberemos qual o real destino de nosso fantástico avatar. A julgar pelo que esperam os especialistas, as atitudes do nosso presidente trarão consequências terríveis. E aí amigos, não será o nióbio nem a cloroquina a salvar o valente Jair. Mais fácil ele travar busca pelo Um Anel, das obras de J.R.R. Tolkien, para que possa desaparecer em meio à chuva de panelaços e trovoadas que o Brasil de carne e osso carinhosamente lhe reserva.

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