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O homem que escondia corpos
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Jair Bolsonaro tem um problema com corpos. Corpos são inconvenientes, subproduto inevitável de sua ação política. Corpos, tal qual rejeito, escória — sobra indesejável — devem ser eliminados sem que se olhe para trás.

Corpos atrapalham, posto que conversam com vivos. Mais: revelam as razões de sua morte, expõem o horror do derradeiro fim. Na política da morte, o morto pouco importa, mas muito atrapalha. Morto, portanto, tem que calar a boca — desaparecer! —, não encher o saco.

Corpo bom é corpo que não fala. O presidente sabe disso. E não é de hoje. Enquanto candidato, Jair propunha um bom destino para o corpo político de seus adversários. A frase abaixo, dita em 2018, nos diz muito sobre sua mentalidade:

"Petralhada, vai tudo vocês (sic) pra ponta da praia. Vocês não terão mais vez em nossa pátria porque eu vou cortar todas as mordomias de vocês. Vocês não terão mais ONGs para saciar a fome de mortadela de vocês. Será uma limpeza nunca visto (sic) na história do Brasil."

Frase similar foi utilizada em 2019, destinada a servidores ambientais, quando Bolsonaro já era presidente:

"Eu tenho ascendência, porque os diretores, o presidente têm mandato, porque se não tivessem, eu cortava a cabeça mesmo. Quem quer atrapalhar o progresso vai atrapalhar na ponta da praia, aqui não."

A “ponta da praia”, destino proposto por Jair à “petralhada” e ambientalistas, fica na Base da Marinha da Restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro, local de desova de corpos no período da Ditadura Militar. Bons tempos eram aqueles do velho regime: após tortura, o corpo era abandonado ao mar, sem vagabundo pra encher o saco. Decerto, não tinha contagem no Jornal Nacional.

Não é de hoje que Jair combate corpos. No governo Dilma — a esquerda tem lá sua fixação com eles — corpos foram desenterrados para contas histórias. O PT os quis como zumbis, para abrir chagas ainda não cicatrizadas. A despeito de seu intento, lá estava Jair para combater ossadas. Sua preocupação, sempre, foi a de evitar a real contagem dos mortos. Números importam. Era questão de contabilidade funerária.

Uma pequena busca na história recente nos mostra que o atual presidente abandonou o berço esplêndido da base governista — era homem de Lula no Congresso — tão logo a pauta das ossadas surgiu no horizonte. Diminuir a contagem de mortos era tarefa patriótica, merecedora de heróica resistência. O número de corpos importa; seu silêncio, por consequência, é fundamental.

Não é possível separar o Jair das ossadas deste Jair que nega o vírus. É o mesmo homem — a mesma mentalidade — a enxergar no corpo do outro um inconveniente essencialmente político. Parte da premissa de que o corpo estendido é inimigo abatido, que tenta lhe aperrear mesmo após as botas batidas. Não há respeito, humanidade, empatia; o presidente se iguala aos psicopatas em sua rebelião contra mortos que insistem em falar.

Apagar as estatísticas diárias de óbitos por COVID-19 é tentar jogar na ponta da praia as vítimas de um vírus que o presidente se negou a combater. Que sumam com este inconveniente! Partamos então para as guerras narrativas — ideia fixa da família — em que a contabilidade diária varia entre 500 a 1500 mortos. Culpemos governadores, a China, a cloroquina não tomada. Se os corpos sumirem do debate, seu regime não soa cruel. Hospital agora é DOPS.

Não é possível traçar um paralelo entra as abordagens pois a linha histórica é uma só. É o mesmo procedimento, baseado em cálculo cruel, que encontra na transparência da sociedade aberta o calcanhar de Aquiles para seu sucesso. Faz sentido. Regimes fechados, como o venezuelano, o chinês e o norte coreano, apresentam números exemplares no combate ao vírus. É esse o nível de excelência que Jair pretende alcançar.

O conflito pretendido, sabotado pela democracia que tanto odeia, tem como fim, conforme sabemos, a destruição da própria democracia. Um presidente rodeado de cadáveres não se faz popular; um presidente impopular não concentra poder. Eis aí a suprema ironia: ao fim do dia, os mortos pelo coronavírus representam o mesmo incômodo que os mortos pela ditadura. São vestígios insolentes que insistem em não sumir.

Há, porém, uma inovação na pedalada funerária. Os corpos não contados já não se restringem aos comunistas de outrora. Morrem vermelhos e amarelos, entreguistas e patriotas. Morrem aos montes, a ponto de não sabermos mais contar. Parece estranha ironia, mas sonhando com ditadura, Jair fez democrática sua ponta da praia.

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