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O ódio venceu a esperança. Ufa!
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Soam as trombetas do apocalipse. Em algum canto do Leblon, entre uma taça e outra de um Carmenère, um homem chora. Eis o homo leblonicus, sorte de figura que rodeia a elite brasileira cheio de princípios humanistas e hipocrisia desumana. Mais que um homem, ele é uma ideia; vive também na Vila Madalena, em São Paulo, ou na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Gosta de Chico, Gil e da aposentadoria do seu pai, funcionário público que recebe acima do teto. Julga ser feliz. Não se importa com o vizinho. Pretende salvar a humanidade.

Voltemos ao seu choro: este homem lamenta profundamente o resultado das urnas neste domingo. Foi levado a crer (ledo engano...) que Boulos e Manuela tinham chances de vencer. Nutriu esperanças, compartilhou Felipe Neto e perdeu miseravelmente na bacia das almas eleitorais. Eis o domingo do sujeito fino, elegante e sincero desse Brasil de Meu Deus.

É perigoso imaginar que o figuras tão radicais tenham soado domesticadas a ponto de disputarem as eleições com tamanha competitividade. O assombro é maior quando lembramos que completamos, mês passado, apenas dois anos das polêmicas eleições de 2018, ano em que Bolsonaro virou presidente e o discurso anti-esquerda chegou ao seu ápice. A redenção do discurso vermelho nas figuras de Boulos e Manuela — bem como a votação expressiva do PSOL no legislativo das capitais — é fato concreto que teremos que lidar.

Mas qual a razão de tal crescimento? Temos uma pista nos resultados em São Paulo. Jamais o voto em ninguém — soma das abstenções com os brancos e nulos — fora tão alto. O gráfico abaixo é ilustrativo: neste pleito, fosse “Ninguém” um candidato, ele teria 41% dos votos, contra 35% de Covas e 24% de Boulos. Uma surra. Ninguém, na eleição anterior, obteve apenas 29%. Cresceu e apareceu em 2020.

As razões para a disparada do desinteresse são várias, a começar pela desmobilização do eleitorado anti-petista, outrora suficiente para que Dória vencesse no primeiro turno na capital paulista. Tal fenômeno, refletido no absenteísmo nas regiões mais escolarizadas, no primeiro turno, sinaliza a desmobilização de uma massa de pessoas que deu o tom do debate político nos últimos anos. Explico.

A classe-média foi o motor dos atos que reviraram o Brasil em 2013 e das maiores manifestações da história do país, ocorridas em 2015 e 2016. Sua “energia cívica”, se assim podemos dizer, foi responsável por transformações profundas na política brasileira — da queda da ex-presidente Dilma até a prisão de Lula. Foi um furacão, que nas urnas se materializou na vitória de Bolsonaro e na eleição de expressiva bancada vinculada à ideia de “direita” no país.

O fiasco de Bolsonaro perante esse eleitorado — expresso em qualquer pesquisa de opinião — ajuda a explicar tamanho desconcerto: muita energia foi dispendida para elegê-lo, e a frustração correspondente é proporcional à esperança depositada. Trocando em miúdos, acreditaram demais, receberam de menos. A título de ilustração, Bolsonaro é aprovado por míseros 17% dos paulistanos, números dignos de Dilma Rousseff. Significa — e muito — nesse contexto apresentado.

Diante deste cenário, a oposição ideológica liderada pelo PSOL, com forte apoio da imprensa e da classe artística, conseguiu impor resultados expressivos nas mais diversas capitais. A tese de que representam a “esperança contra o ódio” — mantra recauchutado de 2018 — fez sentido para importante fatia do eleitorado, em especial dentre mulheres e jovens. Construíram sentido político mesmo apresentando platitudes enquanto projeto de cidade. É, antes de tudo, casca nova pra produto velho.

No segundo turno, porém, as limitações deste modelo ficaram expostas. Boulos e Manuela trataram Covas e Melo com as mesmas categorias ofensivas que se referem a Bolsonaro e os seus. Em São Paulo, pintaram o segundo turno como luta entre “ódio e amor” — Covas representando a malevolência — rememorando os velhos tempos em que o fascismo tupiniquim era encarnado pelo PSDB. Truque barato. Os hippies do PSOL forçaram a barra, mostraram sua concepção muito particular de democracia (“quem não concorda comigo é fascista”) e restringiram sua capacidade eleitoral aos mesmos nichos ocupados pela esquerda em 2018. Alívio para o que resta de racionalidade em São Paulo.

O cenário que pinta para os progressistas é, paradoxalmente, o mesmo de sempre: vão rotular como “ódio” toda e qualquer expressão política fora do seu campo. Incapazes de imaginar política de forma diferente, vivem de rótulos e terraplanismos cor-de-rosa — vide Boulos e sua “solução” para a previdência. Por mais que pintem como novidade, são incapazes de se desprender do velho. Anacrônicos, serviram de adversários perfeitos para que políticos sem discurso nem expressão nadassem de braçada no pleito que se encerrou.

Nas eleições de 2020, há pouco para se comemorar. Se por um lado o petismo e o bolsonarismo caíram, por outro o que chamamos de “velha política” — clientelismo, fundão, concentração de recursos e poder — ganhou espaço e legitimidade. Seu desafio é ganhar discurso. Se transformarem o poder acumulado em argumentos junto ao eleitor, os vencedores de 2020 poderão subir a rampa do planalto em 2022.

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