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O que as pesquisas mostram?
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Não foram poucos os artigos nesta coluna, caro leitor, em que pude descrever os múltiplos fracassos do governo Bolsonaro. Contradições flagrantes do caso Flávio/Queiroz, a saída de Sérgio Moro do governo, a gestão irracional da pandemia, o pibinho pífio do ano passado - com esses elementos compusemos uma imagem, exata e desapaixonada, de decadência e desatino. O governo Bolsonaro como círculo de horrores midiáticos suscitou, à maneira de uma crônica periódica de jornal, reações exaltadas: como na metáfora dos corpos e na contagem de mortos, a indignação cívica se aproxima do asco. Eu me indignei com o governo. Você, se me acompanha até aqui, provavelmente também: compartilhamos de uma mesma sensibilidade moral.

O artigo de hoje traz, assim, uma surpresa. Falaremos de um ponto de inflexão do governo. De uma vitória considerável e de uma estabilização provisória. Pois, sim, o governo Bolsonaro, contra todas as expectativas que se havia acalentado, parece ter alcançado um porto de estabilidade, que se revela na última pesquisa da XP.

A última pesquisa XP/Ipespe atesta uma recuperação controlada do governo. A sangria da popularidade estancou. De maio a julho, o percentual dos que consideram o governo ótimo e bom subiu de 25 para 30%. Caiu de 50 para 45 os que o avaliam como ruim/péssimo, troca exata e proporcional. Até aí são apenas números oscilando. O que nos importa saber é o que há por trás dos números. Quem são as pessoas que antes não aprovavam o governo e hoje o aprovam? Qual o perfil do eleitor desgarrado que, a altura de um ano e sete meses de governo, Bolsonaro conseguiu convencer? Essas são as questões candentes.

Alguns cortes na faixa do eleitorado nos permitem enxergar melhor o fenômeno. Vamos nos ater a essa mudança sensível, de maio para julho (três meses). Das 5 regiões do país, três apresentaram uma subida de aprovação expressiva (Norte, Centro-Oeste e Nordeste). Das regiões - periferia, interior e capital - foram nas primeiras, periferia e interior, em que a aprovação de Jair Bolsonaro cresceu significativamente. Nas cidades menores, ela cresceu consideravelmente mais que nas maiores. Entre evangélicos, cresceu mais que entre católicos. E naqueles que cursam ensino médio mais do que nos demais e, sobretudo, mais do que entre os que têm curso superior, onde a sua aprovação caiu.

A diferença por renda é a mais significativa. Entre as pessoas que ganham até 2 salários mínimos, a aprovação saltou de 21 para 28%, quase os mesmos 30% que ele tinha em julho do ano passado - após os seis meses de clássica aprovação presidencial. Esse dado mostra que a clivagem por renda é particularmente ilustrativa ao sintetizar os traços deslindados no parágrafo anterior.

Se fizermos uma intersecção imaginária desses traços, veremos que existe um público em que Bolsonaro foi mais aprovado neste espaço de três meses, uma espécie de arquétipo do seu eleitor atual (caso a eleição fosse hoje): o jovem evangélico, de classe baixa, das regiões Nordeste, Norte e Centro-Oeste. O que essa intersecção revela? Ela só pode apontar que os fatores de crescimento de Bolsonaro são aqueles que agradam evangélicos, pobres, moradores da periferia e habitantes dessas regiões do país.

O que explica essa mudança? Quando se quer interpretar um fenômeno, a primeira regra é tentar isolar os fatores que variam (as variáveis) dos fatores que não variam (constantes). O que mudou de maio para julho? As duas principais variáveis no arranjo governamental foram a cessão do auxílio-emergencial, necessário por conta da pandemia e a decisão subsequente pela sua prorrogação; a segunda variável foi a nova articulação com o dito centrão - o conjunto de legendas como PP, PL, Republicanos que oscilam ao redor do núcleo de poder político, acoplando-se a ele com extremo pragmatismo e de olho na sua continuidade eleitoral.

Sugerido pela inclusão do Republicanos, devemos acrescentar a essas duas mudanças o espaço cada vez maior cedido aos evangélicos por Bolsonaro. Bolsonaro estreitou sua aliança com os segmentos neopentecostais através de algumas concessões, entre as quais a mais significativa foi a isenção de pagamento do ICMS às Igrejas. Deste modo, hoje temos um governo equilibrado em meio a suas fragilidades.

O equilíbrio que o governo costura é, no entanto, inerentemente instável, pois se fundamenta em uma série de paradoxos. Um governo eleito para ser um elemento moralizador na política alia-se ao centrão; eleito por voto de opinião, passa a ser aprovado em regiões nas quais esse voto é mais raro; eleito por voto das classes A e B, vai perdendo parcela dessas classes à medida em que ganha as classes mais baixas. Mais do que o lulismo, as contradições do bolsonarismo são tremendamente agudas e se revelaram num período curtíssimo. Acrescem os fatos da baixa capacidade técnica dos quadros bolsonaristas e da ausência de uma base partidária própria após a ruptura com a ala bivarista do PSL, e - voilá - temos o ponto de inflexão sobre o paradoxo. Resta-nos, portanto, saber se esse arranjo é um modo viável de conduzir o país até o objetivo supremo e único do presidente: a reeleição.

É preciso notar que se um desses eixos for sacudido, as reverberações podem ser tão abrangentes que o governo entrará numa nova fase: a da precipitação caótica da sua estrutura, o que preludiaria o ato final da tragicomédia: a sua queda. Neste momento, a ambição seria drasticamente reduzida para a mera garantia de sobrevida. É esse momento de aguçado desarranjo que os impeachmistas devem preparar e aguardar, com a paciência cuidadosa dos que possuem um horizonte político de longo prazo.

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