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Vista de edifício típico asiático no bairro Chinatown, em Washington D.C. Foto: Tatiana Palermo.
Vista de edifício típico asiático no bairro Chinatown, em Washington D.C. Foto: Tatiana Palermo.| Foto:

Um dos assuntos mais comentados ao redor do mundo nos últimos dias é a escalada do confronto entre os Estados Unidos e a China. Era esperado que os dois países chegassem a um acordo na semana passada, mas ao invés disso, a divisão entre eles cresceu abruptamente.

Os EUA alegam que a China voltou atrás em relação às posições já negociadas. Pelo que foi divulgado, as maiores discordâncias foram em relação à demanda americana para que a China listasse seus atos legislativos que teriam de ser alterados como resultado dos compromissos assumidos (o que o país asiático chamou de violação da sua soberania nacional); e a intenção do governo americano de manter tarifas mais altas por um prazo de até seis meses após a celebração do acordo (para monitorar o cumprimento dos compromissos por parte da China).

Tampouco estava claro o que e quanto a China se comprometeu a comprar dos Estados Unidos como resultado do acordo.  A imprensa relata que a China ficou com a impressão de que o acordo que estava sendo negociado era desequilibrado, beneficiando mais os Estados Unidos. Por isso, tentou renegociar, mas sem sucesso.

Subestimou, talvez, a situação econômica dos Estados Unidos, pensando que uma possível piora na economia fosse forçar o presidente Trump a ceder nas negociações, conforme avaliam alguns especialistas. Mas a estratégia de renegociação de contrapartidas que, além da área comercial, envolvem a transferência de tecnologia, a inovação, a propriedade intelectual e a segurança de dados, não deu certo.

No último dia 10, passados cinco meses de intensas negociações com a China, os EUA subiram para 25% as tarifas de importação para os produtos chineses no valor de US$ 200 bilhões, em adição aos US$ 50 bilhões em importações chinesas já sujeitas à mesma alíquota desde 2018.

O presidente Donald Trump anunciou, ainda, a intenção de aumentar, também para 25%, as tarifas sobre outros produtos chineses no valor de mais de US$ 300 bilhões, caso os países não alcancem um acordo “muito em breve”. Os negociadores falam que esse prazo seria de um mês. Está previsto um encontro entre os dois presidentes no final de junho, durante a reunião do G20 no Japão.

Nova Guerra Fria?
Os dois lados subiram o tom. A China também passou a adotar o termo “guerra” para caracterizar o conflito. Há quem chame as tensões de uma nova “guerra fria”, em referência ao estado de confrontação entre os Estados Unidos e a União Soviética que começou após a Segunda Guerra Mundial e durou 46 anos.

A China retaliou, elevou suas tarifas para produtos americanos no valor de US$ 60 bilhões, aumentando o universo total de produtos sobretaxados para cerca de US$ 170 bilhões. Lembrando que, no ano passado, os EUA exportaram para a China US$ 179,3 bilhões em mercadorias e importaram US$557,9 bilhões. Se as negociações não avançarem nesse curtíssimo prazo, praticamente o total do comércio bilateral será sujeito a altíssimas tarifas.

A gravidade das tarifas impressiona. Se antes do conflito a China era sujeita, nos Estados Unidos, a uma alíquota média aplicada de cerca de 3%, agora pagará 8 a 9 vezes mais. A indústria americana, que já está sofrendo com tarifas mais altas para o aço e alumínio importados, pagará muito mais por outros insumos e por produtos intermediários ou terá que importar de outros países. As cadeias globais de valor serão impactadas negativamente, algumas delas terão que ser repensadas e remanejadas, e o custo de produção nos EUA deve subir.

Ao invés de criar mais empregos, a política protecionista pode levar ao fechamento de algumas fábricas e à redução de empregos no setor industrial. Ainda é difícil estimar o tamanho desse impacto. Por enquanto, os cortes de impostos adotados pelo governo americano amenizaram a aplicação de tarifas mais altas em 2018, e a economia americana continuou crescendo.

Entretanto, o agravamento do conflito pode piorar a situação. Para a agropecuária americana, em especial, a perda do mercado chinês é muito grave. Nem os subsídios para o setor anunciados pelo presidente Trump, no valor de US$ 15 bilhões (repetindo a ajuda do ano passado, de cerca de US$ 12 bilhões), vão conseguir amenizar todo o impacto negativo: antes do conflito, em 2017, os EUA exportaram US$ 24 bilhões em produtos agropecuários para o mercado chinês.

Os consumidores americanos também vão sentir o impacto, especialmente se entrarem em vigor as novas tarifas sobre as confecções, eletrônicos, brinquedos, móveis, etc. Isso deve impulsionar a inflação. Os mercados e as bolsas estão se adaptando ao cenário de insegurança e de falta de previsibilidade, projetando um crescimento menor tanto para a economia americana quanto para a chinesa.

Voto de Confiança
Mas mesmo sofrendo, os mais diversos setores econômicos e o Congresso americano (e neste caso, estamos falando tanto de Democratas quanto de Republicanos) estão dando um voto de confiança ao presidente Trump.

Por que isso? Os especialistas em Washington chegaram à seguinte conclusão: o sentimento generalizado da população americana é de que a China violou, durante muitos anos, as regras do sistema multilateral do comércio, “trapaceou”, e se tornou uma potência econômica “às custas dos Estados Unidos”. Especializou-se em ser uma “fábrica do mundo”, provocando uma onda de desindustrialização nos EUA e em outros países, e que agora deveria “pagar por isso”.

Os setores de serviços (financeiros, internet, telecomunicações etc.), que não conseguiram acesso ao mercado chinês, a indústria e os trabalhadores do setor industrial, que foram deslocados, as empresas de tecnologia que tiveram que transferir seu conhecimento para entrar no mercado chinês e hoje sofrem uma forte concorrência de empresas de lá, criadas com a ajuda da tecnologia transferida, e muitos outros atores – todos estão se sentindo “traídos” pela China e estão apoiando a atuação do presidente Trump para “contê-la”.

O correspondente de economia do jornal New York Times Peter Goodman comenta que a postura firme de Trump apela para o lado emocional da sociedade americana: patriotismo, orgulho nacional, dignidade, ressentimento, sensação de traição etc. “Apertaremos o cinto” por um tempo, aguentaremos alguns prejuízos, mas venceremos a longo prazo – é assim que pensam os americanos.

Apesar de serem os maiores beneficiários da globalização, conforme a avaliação de Goodman, os Estados Unidos não souberam distribuir de forma justa os lucros com o acesso ao mercado externo. Hoje, os setores que mais sofreram com a concorrência da China verbalizam o sentimento de injustiça e de revanchismo.

A China, por sua vez, declarou que não quer negociar com a “faca no pescoço” e a mídia chinesa já fala em “lutar até o final”. Lá, do outro lado do planeta, a possibilidade de ceder na negociação também esbarra nos sentimentos de orgulho nacional e patriotismo. É a base da propaganda do Estado chinês. A China justifica as suas práticas questionáveis no sistema multilateral do comércio pela necessidade de crescer rápido e tirar o atraso da época do colonialismo.

A Bloomberg escreve que “até mesmo o presidente Xi Jinping, provavelmente a mais poderosa figura política chinesa desde Mao Zedong, não poderá entregar o que Trump quer: uma completa reconstrução do sistema industrial chinês dominado pelo Estado”.

Imbróglio sem fim
A escalada de tensões pode não ter volta. O presidente Trump acabou de publicar um decreto emergencial que impede que as empresas americanas comprem equipamentos e serviços de telecomunicações de empresas ligadas a governos estrangeiros, mirando a Huawei e outras empresas chinesas. Por outro lado, o Departamento do Comércio dos Estados Unidos passou a exigir que as empresas americanas obtenham uma licença prévia para conseguir vender suas tecnologias para a Huawei.

A China, que já esgotou as suas possibilidades de impor tarifas sobre as importações de produtos americanos, pode, a qualquer momento, partir para outras medidas, restringindo a operação de empresas dos Estados Unidos no seu mercado. Além disso, pode crescer a confrontação dos dois países na esfera política e militar.

É absolutamente claro que uma verdadeira guerra vai prejudicar não apenas a China e os Estados Unidos, mas vários outros países ao redor do mundo. A China é responsável por cerca de um terço do crescimento econômico global e, por isso, as dificuldades que ela enfrenta no comércio com os Estados Unidos tornam-se um desafio para o mundo todo.

O mundo precisa que os dois países cheguem a um acordo e que o conflito não se torne uma prolongada guerra fria. A única solução possível é uma convivência pacífica (escrevi sobre isso no meu artigo anterior “China: entre o amor e o ódio“). Só que os ressentimentos, as mágoas e a falta de confiança, misturados com posturas agressivas, estão impedindo o acordo.

No lugar de orgulho e preconceito, é preciso que prevaleçam a razão e o bom senso. É impossível mudar o passado. Tanto os Estados Unidos quanto a China devem olhar para o futuro. Não há vencedores nessa guerra.

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