Pouco mais de 50 anos depois do encerramento do Concílio Vaticano II, ainda existe uma forte batalha pela “alma” deste que foi o principal evento da Igreja Católica no século passado. Há, por exemplo, os que veem o concílio como uma ruptura radical com o ensinamento e a prática da Igreja até então; esses se subdividem naqueles que veem essa ruptura como um mal (são os tradicionalistas radicais que, nos casos mais extremos, rejeitam os próprios documentos do concílio e, nos casos muito, muito extremos, aderiram até ao sedevacantismo) e nos que elogiam esse rompimento como a melhor coisa que poderia ter acontecido à Igreja, para que ela se livrasse de seu passado retrógrado e conservador. É a posição, por exemplo, dos “teólogos da libertação” e de gente que critica os papas João Paulo II e Bento XVI como praticamente “traidores” do “espírito do Concílio”.
Por fim, há os defensores da “hermenêutica da reforma”, como a definiu Bento XVI em 2005. Esse grupo, no qual me incluo, vê o magistério do Vaticano II em continuidade com tudo o que veio antes dele, e não se pode ler ou interpretar o concílio em oposição ao magistério pré-conciliar. Em outra ocasião, o próprio papa explicou que, de imediato, o que vigorou foi a interpretação da “ruptura” (pois o que o mundo viu foi o “Concílio dos meios de comunicação”, que era diferente do “Concílio dos Padres”), e ela ainda é bastante prevalente até hoje. Basta comparar o que o documento Sacrosanctum Concilium, sobre a liturgia, recomendava e o que se faz hoje “em nome da renovação litúrgica pedida pelo Vaticano II” em muitas missas para ver que não tem um boi, mas um rebanho inteiro na linha.
A julgar pelo texto que João Décio Passos e Wagner Lopes Sanchez, coordenadores da coleção Marco Conciliar, da editoria Paulus, escrevem como apresentação no volume Teologia e ciência no Vaticano II, eles parecem estar naquele segundo subgrupo, o da “ruptura boa”. Já o autor do livro, Eduardo Cruz, não entra muito nessa seara. O livro mostra como o Vaticano II abordou a ciência – e não é spoiler nenhum afirmar que os padres conciliares não disseram muita coisa sobre ela em seus documentos: algumas menções na Gaudium et Spes (natural, por se tratar do texto sobre as relações da Igreja com o mundo moderno) e, em menor grau, na Gravissimum Educationis (sobre a educação) e na Apostolicam Actuositatem (sobre o apostolado dos leigos). O autor afirma que, quando se tratava de ciência, a tensão dentro do Vaticano II não era entre bispos “liberais” ou “conservadores” (uma terminologia que, aliás, é aplicada de forma muito errônea a temas católicos), mas entre “otimistas” e “pessimistas” a respeito do impacto da ciência e da técnica no mundo moderno. Compreensível, num mundo pós-bomba atômica e permeado de novas filosofias que prescindiam do divino e de imperativos morais.
E, se o “durante” tem pouco a oferecer, Cruz aproveita a oportunidade para mostrar o “antes” e o “depois” do Vaticano II em termos de relação da Igreja com a ciência. E, se o saldo é positivo, principalmente pelo estímulo que o Vaticano e as ordens religiosas deram às pesquisas científicas, nem sempre os papas e a hierarquia católica puderam abraçar com entusiasmo a ciência – não por culpa da própria ciência, mas por causa das ideologias construídas em torno dela. Os iluministas e os revolucionários franceses, que destruíram igrejas e as substituíam por templos dedicados à “Razão”, foram só o começo de um processo em que a Igreja se viu acuada pela “modernidade”, seja no campo do pensamento quanto no político, inclusive com o fim do poder temporal do papado e o fim dos Estados Pontifícios. E, sendo a ciência uma das expressões dessa “modernidade”, tendo seus arautos inclusive profetizado o fim da religião e sua substituição pela razão/ciência, não é de se surpreender que a atividade científica acabasse vista com cautela por parte da hierarquia católica.
Essa recapitulação histórica pré-Vaticano II feita por Cruz traz temas instigantes: o grau de autonomia do cientista em relação ao religioso, a tentativa de usar a ciência como apoio à religião ou como “prova” das verdades de fé, o conceito de “ciência boa” e “ciência má”, mas boa parte deste capítulo diz respeito, de forma mais específica, à Teoria da Evolução. O texto trata mais das interpretações de teólogos que do magistério católico propriamente dito, pela simples razão de que os papas, pelo jeito, não viram necessidade de endossar nem criticar a teoria de Darwin: Pio IX, que se dedicou muito ao combate a qualquer tipo de heresia, a ponto de fazer uma “lista de erros”, o Syllabus, não incluiu a evolução entre eles. O marco magisterial em relação à evolução será mesmo a Humani Generis, de Pio XII, escrita em 1950, quase 100 anos depois de A origem das espécies. Mas, curiosamente, Cruz prefere citar o parágrafo 35 do documento, em vez do 36. O autor afirma que “À evolução das espécies é finalmente dado o benefício da dúvida, com uma série de ressalvas”. Eu tenho uma impressão mais benigna que a do autor em relação a Pio XII e à Humani Generis nesse aspecto, pois leio o parágrafo 36 como uma permissão bem ampla para o estudo do evolucionismo, e as únicas ressalvas se referem à origem da alma humana e ao monogenismo/poligenismo, ambas envolvendo questões teológicas, ou seja, fora do escopo da biologia. Se há algum exagero, talvez seja apenas ao pedir que ainda não se dê como irrefutavelmente certo que o corpo humano surgiu de matéria viva preexistente.
O tema da evolução também ocupa boa parte do capítulo sobre o pós-Vaticano II, com a entrada em jogo de atores como os defensores do Design Inteligente, teoria que parece contar com a simpatia de alguns membros da hierarquia católica. Cruz dá a esse trecho o título “Persiste a dificuldade com a evolução biológica”; é mais um caso em que minha avaliação tende a ser mais positiva. Eu vejo a Igreja Católica como bastante bem resolvida em relação a esse assunto; a compatibilidade do catolicismo com a teoria de Darwin já me parece bastante estabelecida e reforçada por pelo menos três papas pós-concílio. E não creio que o magistério papal irá além disso. Não imagino papa algum lançando condenações ao Design Inteligente ou ao criacionismo de Terra jovem, nem proclamando que a evolução é verdadeira, simplesmente porque isso não lhe cabe. Alguma coisa aprendemos com o heliocentrismo, certo?
Pequeno merchan
Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro, e provavelmente haverá eventos de lançamento que anunciarei aqui no blog, assim que definirmos datas e locais.
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