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O Convento do Carmo, em Lisboa
O Convento do Carmo, em Lisboa, foi deixado em ruínas como um memorial do terremoto devastador de 1755.| Foto: Marcio Antonio Campos/Gazeta do Povo

Estive uma vez em Lisboa, em 2014. Um dos muitos lugares incríveis da capital portuguesa é o Convento do Carmo, que desmoronou (junto com boa parte da cidade) no terremoto de 1755 e, depois de um início de reconstrução, acabou deixado em ruínas. O terremoto, seguido por tsunami e incêndio, ocorreu na manhã de 1.º de novembro, festa de Todos os Santos, e o fato de muitos lisboetas estarem assistindo à missa nas várias igrejas da cidade aumentou o número de mortos – de 15% a 20% da população da cidade faleceu no episódio. Isso levou o filósofo iluminista Voltaire a questionar, em um poema, por que um Deus bondoso permitiria que uma tragédia dessas dimensões ocorresse. Foi mais um capítulo do então nascente debate sobre a teodiceia, a busca da resposta à questão sobre o papel que Deus desempenha diante do mal no mundo.

Isso me trouxe à mente um episódio do podcast Naked Reflections, publicado no começo do mês (se a proximidade com o 265.º aniversário do terremoto de Lisboa foi intencional, eu não sei), em que o apresentador Ed Kessler recebeu a vulcanologista Marie Edmonds e o reverendo Roger Abbott, do Instituto Faraday para Ciência e Religião da Universidade de Cambridge. Ele pesquisa justamente a resposta dos cristãos de hoje a eventos naturais, tendo trabalhado no Haiti, afetado por um terremoto destruidor em 2010, e em Nova Orleans, após a passagem do furacão Katrina.

Sendo um podcast mais “filosófico” dentro de um site de ciência, os participantes conversam bastante sobre as questões puramente científicas, por exemplo sobre quais seriam os próximos eventos com potencial destrutivo (como megaerupçoes vulcânicas) e sobre como alguns desses eventos foram essenciais para o desenvolvimento do planeta e da vida. Mas também conversam sobre as implicações religiosas desses eventos. Abbott começa lembrando, por exemplo, que o Antigo Testamento tem passagens indicando que a Terra não é exatamente um lugar “tranquilo”, mas é na segunda metade do podcast que os comentários sobre o tema ficam mais frequentes e interessantes.

Abbott diz se aborrecer um pouco com a parte “teórica” da teodiceia. “Isso vem sendo discutido há séculos, até agora ninguém chegou com a resposta definitiva, ‘ah, resolvemos o problema’. Não resolvemos, e nunca resolveremos”, afirma. O que realmente lhe interessa é a resposta das pessoas atingidas por desastres. E aquelas com quem Abbott conversou não estão nem um pouco interessadas em teodiceia. Elas não costumam “culpar” Deus por nada, pelo contrário: elas encontram conforto na fé. Na verdade, é bem mais frequente que culpem outras pessoas, aquelas cujas políticas e ações ajudam a manter os demais na pobreza e na dependência de ajuda, seja estatal, seja de ONGs, em uma denúncia de injustiça social que Abbott compara à de vários profetas do Antigo Testamento. E não é só isso; os dois entrevistados lembraram que são as pessoas que projetam construções que não aguentam as forças da natureza ou em áreas que não deveriam receber certos tipos de estrutura (Marie Edmonds mencionou, por exemplo, os hotéis de beira de praia atingidos pelo tsunami de 2004 na Indonésia), e são as pessoas que promovem políticas que empurram os mais pobres a locais precários.

Marie Edmonds lembrou que, à exceção dos eventos extremos relacionados ao clima, que estão se tornando mais frequentes, o mundo não está experimentando mais terremotos ou erupções vulcânicas. E, no fim das contas, também esses fenômenos são parte do modo como Deus cria; não podemos dar-lhes uma avaliação “moral”. É o que nós fazemos que vai potencializar ou atenuar o dano que eles causam às pessoas.

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