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E se a origem da vida não foi como na pintura de Maarten de Vos, por que o cristão deveria ficar preocupado? (Imagem: Reprodução)
E se a origem da vida não foi como na pintura de Maarten de Vos, por que o cristão deveria ficar preocupado? (Imagem: Reprodução)| Foto:

Enquanto reorganizava a biblioteca de casa após a mudança, encontrei um livro que haviam me enviado e dei uma folheada nele. Trata-se, basicamente, de um estudo sobre o livro do Gênesis, criticando não apenas a teoria da evolução, mas até mesmo o Big Bang! E ainda sobram umas indiretas para o criacionismo de Terra antiga, acreditem vocês. Enfim, é uma defesa ferrenha do criacionismo de Terra jovem, da leitura 100% literal do relato da criação, com umas pitadas de Design Inteligente e algumas afirmações bem simplórias, como “se os humanos vieram dos gorilas, por exemplo, por que ainda existem gorilas e por que pararam de evoluir?”.

A certa altura, a autora diz que “o criacionismo defende que há um Criador, o evolucionismo diz que não há”. Na página anterior, afirma que “ele [no caso, Phillip Johnson, autor de Darwin no banco dos réus] diz também que a leitura do darwinismo está cheia de conclusões antiteístas, tais quais: o universo não foi planejado e não tem propósito, e que nós, humanos, somos o resultado de processos naturais cegos que não se importam conosco”. Aí a coisa fica muito complicada, porque não há como saber o que a autora quer dizer com “evolucionismo” e “darwinismo”. O que é certo é que a teoria da evolução, no sentido em que foi formulada por Darwin, não trata da existência de um criador ou da origem da vida na Terra, limitando-se a explicar como, a partir de formas de vida primitivas, surgiu a variedade de seres vivos observada hoje (ainda que Darwin, pessoalmente, acreditasse em uma origem natural da vida, como afirmou em algumas cartas). Mas sim, há um outro tipo de “darwinismo”, dessa vez usando o sufixo -ismo como ideologia, e então a descrição feita acima está correta quando cita a negação de um propósito na existência, por exemplo. Mas inúmeros autores insistem que, nesse caso, o que há é um “sequestro” de uma teoria biológica para tirar dela conclusões filosóficas e metafísicas. Mary Midgley já chegou a dizer que isso não deveria ser chamado de “darwinismo”, mas de “dawkinsismo”, com o que concordo totalmente.

Essa questão da origem da vida na Terra me lembrou de uma série de textos publicados pela Fundação BioLogos, alguns não tão recentes, mas que ajudam a entender um pouco por que não devemos nos preocupar com a possibilidade de a vida ter surgido de processos naturais. O primeiro texto que eu recomendaria é este aqui, em que são apresentadas, de modo muito resumido, as teorias e as experiências mais promissoras até o momento para explicar como se passou da matéria inorgânica para a orgânica por meios naturais, e como os primeiros bloquinhos necessários para o que conhecemos como vida pudessem se agrupar e dar origem aos primeiros seres vivos.

Mas esse primeiro texto não nos diz nada sobre que tipo de implicação isso teria para a fé cristã, limitando-se a tratar o tema do ponto de vista científico: quais são as hipóteses, quais são as pistas que já temos, etc. Os textos dessa sensacional série de posts explicando o bê-a-bá da teoria da evolução, escrita por Dennis Venema, já avançam bem mais: quando trata da questão do surgimento da vida, Venema lembra que a teoria da evolução não trata do assunto, e por isso qualquer dúvida que haja a respeito de como apareceu a vida na Terra não pode ser usada pelos cristãos para desacreditar a evolução, embora seja exatamente isso o que acontece com alguma frequência. No texto seguinte, Venema enfrenta a questão da incerteza a respeito da origem da vida: pode ter sido um milagre? Pode. Mas pode ter sido um evento natural? Pode também. E aqui é que está o cerne da coisa: admitir que a vida tenha surgido na Terra por meios naturais não é uma rendição ao naturalismo ateísta. Para o cristão, a vida, em última análise, vem de Deus; se surgiu por uma ação direta Sua ou por meio das leis da natureza (leis que Venema entende como parte da aliança feita entre Deus e a criação), é o de menos. “Será que Deus, na Sua sabedoria, desenhou o cosmo de modo que os elementos químicos pudessem ganhar vida?”, ele pergunta. E, se foi assim, eu não me maravilharia menos do que se soubesse que a vida surgiu por um fiat divino. Já o terceiro texto da “série dentro da série” não traz nenhuma reflexão metafísica, mas é bom para entender a hipótese do RNA, seus pontos fortes e suas limitações. Daí em diante Venema passa a tratar de outros “temas-limite”.

Enquanto a ciência segue investigando como a vida surgiu na Terra, não há nada que nos impeça de acreditar que esse fenômeno tenha ocorrido por ação direta divina. Minha preocupação é com a mentalidade de fundo que motiva essa crença. Alguém movido pela ideia do “Deus das lacunas”, por exemplo, ficará extremamente perturbado se um dia houver uma explicação natural bastante convincente. Um cristão mais maduro, no entanto, não terá o menor problema em retificar suas convicções e dar ainda mais glória a um Deus que criou um universo cujas leis permitem tais maravilhas.

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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