Pouco mais de dez anos atrás, Nick Spencer, pesquisador do think tank britânico Theos, mergulhou na correspondência de Charles Darwin para escrever Darwin and God, livro que resenhamos no blog há alguns meses. Pude conversar com ele em julho, durante uma conferência de que ambos participamos em Birmingham; para Spencer, que recentemente apresentou uma série sobre ciência e religião na rádio BBC, Darwin certamente não estaria lutando ao lado de ateus militantes que alegam estar defendendo o naturalista nascido 210 anos atrás – nem na ideologia, pois Darwin nunca foi ateu, nem defendia a ligação entre evolução e ateísmo; e muito menos na retórica, pois ele teria ficado horrorizado com a agressividade do Novo Ateísmo.
Seu livro Darwin and God descreve os vários tipos de inquietações e dúvidas religiosas que Darwin teve ao longo de sua vida. Como o homem de hoje pode se relacionar, ou se identificar com essa jornada religiosa de Darwin, de um certo tipo de cristianismo em direção ao agnosticismo?
Há duas respostas para isso. A primeira é a de que não há identificação possível, porque Darwin era um homem de seu tempo. Ele nasceu em 1809 e morreu em 1882, foi criado em um tipo muito particular de anglicanismo e unitarianismo característicos do século 19, era de classe média-alta, viveu durante um período de uma incrível expansão global e industrial, em uma época de afirmação tanto do soft power quanto do hard power do Império Britânico. Tudo isso está intimamente ligado à sua cultura, a quem Darwin era, mas esse mundo não existe mais. Por esse lado, não temos como entendê-lo.
Por outro lado, Darwin é alguém que encontrou mundos diferentes. Ele precisou viajar pelo mundo para isso, e o que ele descobre o perturba, o deixa perplexo. Ele é alguém fisicamente frágil, que sofre com terríveis dores de estômago, era uma pessoa ansiosa. Mas, principalmente, é um homem que encontrou o sofrimento, especialmente com a morte da filha Annie, em 1851. Sua correspondência revela alguém profundamente humano, de uma forma muito perceptível.
Isso nos leva a dois pontos de identificação. Primeiro, hoje não precisamos dar a volta ao planeta para encontrar visões de mundo e culturas diferentes, porque vivemos em uma sociedade muito mais plural e multicultural. Em 1834, quando Darwin encontra os fueguinos no alto da colina, na Terra do Fogo, ele fica completamente chocado. Existe certa similaridade com o que sentimos hoje. Não temos o mesmo choque quando encontramos outras culturas, mas o pluralismo moderno continua nos inquietando e incomodando, de alguma forma. E o segundo ponto, evidentemente, é que, mais cedo ou mais tarde, todos nós nos deparamos com o sofrimento. Queira Deus que não seja algo tão extremo como o que Darwin viveu, mas ainda assim é algo com que todos podemos nos identificar.
Darwin fez modificações nas edições subsequentes de A origem das espécies, e volta e meia, quando a primeira edição é republicada ou traduzida, diz-se que ali está o Darwin “autêntico”, livre das amarras e pressões religiosas que o forçaram a incluir epígrafes, fazer revisões ou acrescentar referências a um criador. Essas alegações fazem sentido?
Antes de responder, deixo claro que não sou especialista na história textual da Origem, então ficaria satisfeito caso alguém me corrigisse no que vou dizer. É verdade que, em 1863, Darwin escreveu a J. D. Hooker, lamentando ter usado a expressão “soprada” ou “insuflada” [no original, breathed into] no fim da primeira edição do livro [a segunda edição acrescentaria “soprada pelo Criador”], e ele revisou essas referências. Na carta, ele diz se arrepender de ter se curvado à opinião pública e usado “a concepção bíblica de criação” quando simplesmente quis se referir a algo que surgiu por processos desconhecidos. Mas minha impressão é de que Darwin não fez mudanças na Origem por pressão religiosa. Elas parecem assumir mais uma direção lamarckiana, devido às dúvidas que ele tinha a respeito do peso das evidências coletadas, e não têm a ver com questões religiosas. Olhando as mudanças feitas por Darwin na Origem ao longo da sua vida, parece-me que elas se devem ao fato de ele estar refletindo sobre questionamentos científicos, mais que controvérsias religiosas. Mas, como eu disse, a história textual da Origem não é minha especialidade.
Quão difícil é, hoje, separar o que Darwin de fato afirmou, ou quis afirmar, daquilo que seus seguidores alegam que ele disse, às vezes usando a evolução para promover outras ideias, como o ateísmo e a eugenia?
Por um lado, agora está mais fácil identificar o que Darwin pensava, porque sua correspondência está disponível, inclusive na internet. Então, podemos conferir o que ele realmente afirmou de forma privada. Claro, sempre haverá debate sobre o que ele quis dizer com determinado texto, por mais cuidadoso que Darwin fosse com as palavras que usava em suas cartas. Mesmo assim, separar o seu pensamento real das distorções feitas em nome da evolução está mais fácil. Veja o caso da eugenia. Tempos atrás, parecia haver uma ligação direta entre a evolução e a eugenia, ou o chamado “darwinismo social”. Mas agora, que conhecemos melhor Darwin, sabemos que ele era veementemente contrário a qualquer uso político ou biológico da evolução. Adrian Desmond e James Moore publicaram, em 2009, um livro chamado Darwin’s sacred cause, que mostra em detalhes a ligação de Darwin e sua família com o movimento abolicionista, e como ele moldou sua visão de mundo. Por esse ângulo, agora é mais fácil determinar de forma clara “isso é o que Darwin disse”, “isso é o que ele quis dizer”.
No entanto, a controvérsia sobre criação e evolução é hoje uma das frentes de batalha na guerra cultural, que está cada vez mais feroz. E, como dizem, na guerra uma das primeiras vítimas é a verdade. Então, por mais fácil que seja hoje verificar as palavras de Darwin, ao mesmo tempo muitos mitos e meias-verdades estão sendo propagados livremente, o que leva cada vez menos pessoas a perceber o que ele realmente afirmou.
Atualmente, qual é a principal, ou a mais perigosa distorção das ideias de Darwin?
Historicamente, o risco estava na eugenia e no “darwinismo social”, que usaram a evolução para sua “ciência racial”. Ambas tiveram seu auge na primeira metade do século passado, mas na segunda metade se tornaram algo impensável para qualquer pessoa minimamente decente. Parece, no entanto, que a “ciência racial” está tentando voltar à moda, pelo que andei lendo de passagem. Não sei se é mesmo verdade, mas sempre há esse risco, e quem quiser promover esse tipo de coisa vai acabar recorrendo a Darwin para justificar suas ideias. Não que ele mesmo defendesse algo assim, como acabamos de falar; mas é um perigo permanente, porque Darwin lidou com questões fundamentais relativas à vida, evolução, competição e por aí vai.
Além disso, há a exploração das ideias de Darwin em políticas sociais. Nos anos 70 e 80, quando parte do Hemisfério Norte se virou para o neoliberalismo – como foi aqui no Reino Unido, com Margaret Thatcher –, não se invocou exatamente uma base darwiniana. Havia justificativas utilitaristas, e até cristãs, para o neoliberalismo. Aparentemente, alguns teóricos econômicos dos anos 70 se encantaram com a ideia do “gene egoísta” e a usaram para embasar teses neoliberais, mas ficaram desapontados quando o próprio Richard Dawkins os desautorizou. Minha impressão, no entanto, é de que há um tipo de pano de fundo que invoca o darwinismo, mesmo que não explicitamente, até porque o “darwinismo social” ficou tão associado com os horrores da primeira metade do século 20 que é melhor não trazer isso à tona outra vez.
Falando em Dawkins, algo que aparece na correspondência de Darwin é sua delicadeza com as pessoas que discordam dele, e seus apelos por um debate civilizado, especialmente quando se trata de implicações da evolução em questões religiosas. O que Darwin diria sobre o estado atual da discussão?
Eu escrevi Darwin and God em 2009, e naquela época lançamos um grande projeto chamado “Rescuing Darwin”. E nós o chamamos assim porque ele precisava ser “resgatado” do meio do fogo cruzado entre o Novo Ateísmo e o criacionismo, ou entre o Novo Ateísmo e qualquer pessoa com fé. Ele tinha se tornado garoto-propaganda do Novo Ateísmo, e não considerávamos isso correto por duas razões. A primeira é o fato de Darwin nunca ter sido ateu, e ele o dizia explicitamente. Sua autobiografia e sua correspondência mostram que ele oscilou entre o teísmo, o deísmo e o agnosticismo. Então, ele não estaria lutando ao lado dos neoateístas na mesma trincheira, nem na ideologia, nem – e aqui entra o segundo ponto – na retórica. Após ler sua correspondência, passei a apreciar Darwin exatamente por ser um interlocutor gentil, generoso e paciente. Ele fica frustrado, ele se irrita, e de vez em quando reclama de terceiros em suas cartas, mas jamais responde fogo com fogo. Ele normalmente mostra a outra face, e não é nem belicoso, nem agressivo em sua retórica. Eu começo meu livro afirmando que Darwin detestava controvérsias religiosas. Ele nunca foi um ateu, ele debatia de forma gentil, então imagino que ele estaria confuso e decepcionado com a maneira como sua pessoa e suas ideias foram arrastadas para o que às vezes é uma discussão de péssimo nível.
“Darwin tinha se tornado garoto-propaganda do Novo Ateísmo, e não considerávamos isso correto”
No relatório do projeto “Rescuing Darwin”, você e Denis Alexander usam a expressão “nadamaisqueísmo” [nothingbuttery, no original] para descrever o reducionismo biológico. Quão forte é essa ideia entre os cientistas e na sociedade como um todo?
Você conhece o ditado: “para quem só tem martelo, todo problema é prego”. Tudo que você vê na sociedade pode ser resolvido pelo seu próprio conjunto de habilidades ou visão de mundo. No século 18, durante os primeiros anos da mecanização, essa ideia do ser humano como uma máquina parecia algo muito evidente, e assim o corpo todo podia ser descrito exatamente nesses termos, como mero mecanismo. Aí você avança um quarto de milênio e continua a ver os mesmos argumentos, mas agora como se os humanos não fossem mais que “genes egoístas”. Não sei o quão influente essa ideia continua a ser, mas sei que temos a tendência de descrever o mundo em termos simples, compreensíveis – de preferência, os meus termos. Isso vale para religiões e ideologias, tanto quanto para os cientistas. Queremos explicar o mundo com uma única metáfora simples e elegante, e é o que fazemos. E aí dizemos não apenas que isso é assim, mas que essa explicação basta. Daí o “nãomaisqueísmo”. Mas o mundo é complexo, é plural, é cheio de fenômenos que escapam às explicações simplistas. Precisamos estar permanentemente precavidos contra elas, porque elas continuarão aparecendo.
Darwin foi muito influenciado pela teologia natural de William Paley, que no fim acabou ajudando a enfraquecer sua fé. A teologia natural parece estar voltando, remodelada, não como evidência do criador, mas como apoio para quem já tem fé, um elemento adicional. Quem anda fazendo boa teologia natural hoje?
Os nomes que me vêm à mente de imediato são aqueles mais familiares. John Polkinghorne, embora me parece que ele não tem escrito mais. Alister McGrath, obviamente. E eu também citaria Rowan Williams e suas Palestras Gifford de alguns anos atrás, reunidas no livro The edge of words, que vão nessa tradição de teologia natural.
E, na sua opinião, essa nova teologia natural está no caminho certo?
Fazer teologia natural é inevitável. Nós sempre vamos nos questionar sobre o relacionamento entre criador e criação, ou, mais precisamente, sobre o que a criação diz a respeito do criador. E, já que é assim, melhor fazer direito, e por “fazer direito” eu quero dizer fazer teologia natural com muito cuidado e humildade intelectual, além do máximo possível de autonomia intelectual. Se você está olhando para a criação como um possível indício de um criador, você precisa ser muito cauteloso com qualquer conclusão que tire disso, porque de tempos em tempos a ciência vai nos apresentar desafios a essas conclusões. O problema é que, historicamente, as ideias religiosas meio que se uniram à filosofia, ou à filosofia natural do momento, seja aristotélica, newtoniana, o que for. E mais cedo ou mais tarde há uma ruptura, e o cristianismo paga o preço de sua fusão com esses sistemas filosóficos.
Então, não há problema em fazer teologia natural, só não se pode “casar” toda a sua teologia com um sistema filosófico. Você pode fazer sua teologia, sua teologia natural, ou mesmo a sua ciência, e elas podem estar dialogando; mas, quando uma começa a se apoiar demais na outra, elas se tornam estruturas muito vulneráveis. É um risco inerente que exige um grau de reserva e autonomia intelectual como precaução.