Ontem completaram-se 90 anos de um texto curto, mas fundamental para a ciência moderna: em 9 de maio de 1931, a Nature publicou um comentário do padre e astrônomo Georges Lemaître em que lança as bases de sua teoria sobre o início do universo – o que hoje o mundo conhece como o Big Bang.
Em “The beginning of the world from the point of view of quantum theory”, Lemaître começa dizendo que, para seu orientador e mentor, Arthur Eddington, a ideia de que o universo teve um início é absurda, mas que recentes descobertas permitiam pensar no contrário. “Se voltamos no tempo deveremos encontrar cada vez menos quanta, até que encontremos toda a energia do universo condensada em alguns poucos ou até mesmo em um único quantum”, escreve. E continua: “Se o mundo começou com um único quantum, as noções de tempo e espaço não significariam nada neste início; eles só começariam a representar algo quando o quantum original tivesse se dividido em um número suficiente de quanta. Se esta sugestão estiver correta, o começo do mundo aconteceu um pouco antes do começo do espaço e do tempo”.
“Se voltamos no tempo deveremos encontrar cada vez menos quanta, até que encontremos toda a energia do universo condensada em alguns poucos ou até mesmo em um único quantum.”
Georges Lemaître, em texto publicado na Nature em 9 de maio de 1931.
Lemaître continua o raciocínio dizendo que, dependendo do desenvolvimento da teoria quântica, “podemos conceber o início do universo na forma de um único átomo, cujo peso atômico seria a massa total do universo”, mas encerra dizendo que essa concepção não significa que todo o desenvolvimento do universo já estivesse contido nesse “átomo primordial”: “a história completa do mundo não precisa estar escrita no primeiro quantum como uma canção está gravada em um disco. Toda a matéria do mundo deve ter estado presente desde o começo, mas a história que ela conta pode ser escrita passo a passo”.
O ano de 1931 foi um marco na carreira de Lemaître. Seu artigo de 1927 (antes, portanto, de Edwin Hubble anunciar suas descobertas) sobre o afastamento das galáxias, originalmente publicado em francês, tinha sido traduzido para o inglês, saindo na edição de março de 1931 do Monthly notices of the Royal Astronomical Society, ao lado do complemento intitulado “The expanding universe”. Foi este artigo, aliás, que passou do francês para o inglês sem algumas equações importantes que dariam a Lemaître o pioneirismo no cálculo do que ficou conhecido como Constante de Hubble; chegou-se a suspeitar até mesmo de uma “censura” feita por amigos de Hubble para que o norte-americano não perdesse a primazia, mas o astrônomo Mario Livio, mergulhado na correspondência de Lemaître, descobriu que as equações tinham sido removidas a pedido do próprio padre.
O que veio depois, bem, nós sabemos: Lemaître refinou cada vez mais sua teoria, mas precisou se equilibrar entre dois extremos. De um lado, aqueles que, por preconceito antirreligioso, não avaliaram a teoria por seu mérito científico, mas a descartaram de antemão por verem nela nada mais que um “cavalo de Troia” para se consolidar a noção de uma criação divina do universo – afinal, o autor era um padre, não? E isso apesar de as palavras escolhidas por Lemaître no texto da Nature sempre tratarem de um início temporal, e não de uma origem ou criação. Aqui podemos tanto incluir a ironia não tão sutil de Einstein sobre “a mais bela e satisfatória explicação da criação que já ouvi” quanto a zombaria de Fred Hoyle, o criador da expressão “Big Bang”. Do outro lado, religiosos entusiasmados que associaram o Big Bang ao Fiat lux criador, um grupo que incluiu até mesmo o papa Pio XII, que Lemaître precisou advertir privadamente; ainda hoje existe uma certa “apologética do Big Bang” que perpetua essa confusão, segundo William Carroll, e que confunde os conceitos de “início temporal”, “origem” e “causa”.
No fim, Lemaître estava mesmo certo, ainda que o reconhecimento completo tenha demorado para vir. E tudo começou com aqueles quatro parágrafos na Nature...
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