No começo de agosto, a Câmara Brasileira do Livro anunciou os vencedores da primeira edição do Prêmio Jabuti Acadêmico. Infelizmente, meu amigo Alexandre Zabot e seu Introdução à Cosmologia Moderna: um curso de graduação não venceram a categoria Astronomia e Física. O destaque da premiação foi a filósofa Marilena Chauí, cujo Introdução à História da Filosofia: Volume 3: a Patrística – Introdução ao Nascimento da Filosofia Cristã levou dois Jabutis, nas categorias Divulgação Científica e Filosofia. E outro amigo, Alexander Moreira-Almeida, da UFJF, me mandou um vídeo com uma palestra de Chauí na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, por ocasião do lançamento do livro, já depois do anúncio das premiações. Certamente não serão os 40 minutos mais bem gastos de suas vidas (a filósofa começa a falar no minuto 22), mas, se eu vi, vocês também terão de ver:
O preconceito antirreligioso escorre do vídeo, como se pode ver em certas passagens (a do motorista de Uber é bem emblemática). O mais incrível é que Chauí admite candidamente que seu preconceito afeta inclusive o seu trabalho: diz que sua série sobre história da filosofia não terá um volume sobre a Idade Média porque ela “se recusa” a fazê-lo, e que “tomou distância dos autores cristãos sobre Patrística” porque eles “são cristãos que fazem apologia do cristianismo”. Ninguém espera que todo livro, sobre o assunto que for, seja necessariamente elogioso, mas como é que alguém disposto a escrever sobre Patrística nem sequer examina o que já foi escrito sobre o tema, ainda que seja apenas para contestar esses escritos?
Mas esta não é uma coluna sobre filosofia, nem sobre Patrística; acontece que, em sua palestra, Chauí fala duas enormes bobagens sobre ciência e fé e que revelam, além do seu preconceito antirreligioso, uma grande ignorância a respeito de dois grandes momentos da história da ciência: a controvérsia heliocentrista e a concepção da teoria mais aceita nos dias de hoje para explicar o surgimento do universo.
Físico que defende o Big Bang não pode ser cristão
“Eu procurei mostrar que há uma filosofia cristã. Porque essa é a primeira pergunta que fazem. O [Emile] Bréhier, por exemplo, na História da Filosofia dele, diz que não se fala num matemático cristão, num físico cristão, não há por que falar num filósofo cristão. Um equívoco brutal, eu começo o livro com esse equívoco brutal cometido pelo Bréhier. Porque uma coisa é não ter uma geometria cristã, mas uma física cristã... chega no bang bang [sic]. Haha. Diz que a origem é o bang bang [sic]. Esse físico pode ser cristão? Não pode. Deus não criou o mundo a partir do nada? Então, um físico cristão? Hmmm. O grande físico era judeu, era Einstein.” (32:04 a 33:07)
Bom, sobre western cristão não posso falar nada. O que posso falar é do “físico cristão” que formulou a teoria do “átomo primordial”, e que depois virou a teoria do Big Bang, nome dado por um dos detratores da ideia, Fred Hoyle. Aliás, o autor dessa teoria não era só cristão: era padre, o nosso velho conhecido Georges Lemaître. E não só era padre, mas era padre de profunda vida espiritual. Isso certamente não o impediu de chegar à conclusão do “átomo primordial” porque Lemaître, ao contrário de Chauí, sabia o que tinha descoberto: não uma teoria sobre a criação de tudo o que existe, mas uma teoria sobre o início temporal do universo, o que é diferente.
“Até onde posso ver, tal teoria [do átomo primordial] está totalmente fora de qualquer discussão religiosa ou metafísica.”
Georges Lemaître, padre católico e físico, formulador da teoria do Big Bang, em 1958
O Tubo perguntou a Chauí (na terça-feira, por meio da assessoria de imprensa da FFLCH; na quarta, diretamente no e-mail da filósofa) o que a teoria do Big Bang tem que a tornaria impossível de ser abraçada por um cristão. Ela não respondeu, mas na palestra ela não deixa muita margem para dúvidas. Chauí acha que um físico que defenda o Big Bang não pode ser cristão porque isso implica afirmar que não foi Deus quem tirou o universo do nada, algo que um cristão não poderia jamais professar. A filósofa comete o erro diametralmente oposto ao dos que enxergavam (e ainda enxergam) no Big Bang a “prova científica” da criação divina; para ela, o Big Bang, ao postular uma causa natural para o início do universo, soa como a prova de que não houve criação e não há Deus, daí a impossibilidade (na cabeça dela) de a teoria ser abraçada por um físico cristão.
Mas uma coisa não tem absolutamente nada a ver com a outra, e Lemaître se empenhou demais em convencer seus pares disso, já que não foram poucos os que avaliaram a teoria não pelos seus méritos científicos, mas porque era um padre que a propunha e, justamente por se tratar de uma hipótese sobre o começo do universo, era impossível não pensar também no Fiat lux bíblico. “Até onde posso ver, tal teoria [do átomo primordial] está totalmente fora de qualquer discussão religiosa ou metafísica”, escreveu o padre belga em 1958, em sinal de que a confusão ainda estava presente décadas depois de ele ter proposto sua teoria (e continua assim, como demonstra Chauí). No fim, Lemaître venceu e convenceu, e até Einstein teve de admitir que estava errado em sua defesa do universo estático.
Eis aí um, como foi que ela disse?, “equívoco brutal” que teria sido facilmente evitável se Chauí tivesse lido algo do próprio Lemaître. Ou, ainda, um pouquinho – um pouquinho só, nem precisa ser muita coisa – do que escreveu a esse respeito William Carroll, especialista no pensamento de Santo Tomás de Aquino, um desses filósofos que ela fará questão de ignorar em seu trabalho por nenhuma outra razão além do próprio preconceito. “Ultrapassa o que eu posso suportar”, diz ela. Talvez ultrapasse mesmo, mas não da forma que ela imagina.
Morreu muita gente na fogueira por causa do heliocentrismo
“E aí, como é que foi mesmo que se deu a passagem do geocentrismo ao heliocentrismo? Quanta gente foi pra fogueira? O que aconteceu com Galileu quando virou a luneta pro céu? Então, não vem que não tem.” (33:15 a 33:31)
Ótima pergunta: quanta gente foi pra fogueira por causa do heliocentrismo? Até amplio a questão: quanta gente a Inquisição mandou pra fogueira por causa de teorias científicas? Eu não sei se Chauí sabe a resposta (também perguntei isso a ela nos dois contatos feitos durante a semana), não sei se o pessoal que estava lá assistindo à palestra dela sabe a resposta. Eu sei a resposta e até a publiquei um dia aqui na coluna, muitos anos atrás.
Então, a verdade é dura, mas é a verdade: ninguém, absolutamente ninguém foi condenado à morte por defender o heliocentrismo, e da mesma forma ninguém, nem mesmo Giordano Bruno, foi queimado por causa de ideias que hoje consideramos científicas (lembrando que o que chamamos de “ciência” estava em estágio inicial naquela época). Quando se analisa mais a fundo os casos daqueles que se empenharam também no estudo da natureza e tiveram problemas com a Inquisição, percebe-se que o problema sempre residia em opiniões teológicas, não científicas.
Sempre que eu vejo alguma ideia estúpida ganhando palanque, especialmente na academia, digo que “jabuti não sobe em árvore”, ou seja, a bobagem não se estabelece sozinha: orientadores de pós-graduação, editores e revisores de revistas acadêmicas, todos esses e mais alguns dão sua forcinha indispensável. Com intelectuais que ganham carta branca para pontificar sobre absolutamente tudo, ainda que não esteja em sua área de atuação, é a mesma coisa: eles só têm esse reconhecimento porque lhes foi dado por alguém. Chauí, até onde eu sei, é especialista em Spinoza, e provavelmente há outros temas que ela domina e nos quais é autoridade. A relação entre ciência e fé não é um deles, e não é um Jabuti Acadêmico que vai mudar isso.
Uma terceira opinião sobre a pesquisa Gallup
Em duas colunas anteriores, comentei os resultados da mais nova pesquisa Gallup sobre adesão ao criacionismo e à Teoria da Evolução nos Estados Unidos, e questionei por que a queda na quantidade de criacionistas parece não estar sendo capitalizada pelo grupo que defende uma “evolução guiada por Deus”. Depois da publicação da coluna de 17 de agosto, recebi mais um retorno, de Karl Giberson, autor de Saving Darwin e ex-presidente da Fundação BioLogos, que trouxe mais alguns elementos ao debate, e não descartou a influência de fatores políticos.
Ele não descarta o fato de que a “evolução teísta” esteja, sim, capturando os ex-criacionistas; o problema é que antigos defensores da “evolução guiada por Deus” estariam se decepcionando com essa tese em quantidades similares – daí a estabilidade dessa resposta na série histórica do Gallup. “A evolução teísta não fez muito progresso em desenvolver uma explicação convincente sobre como Deus cria por meio da evolução. Além disso, tem havido mais debate sobre o sofrimento animal, sem uma explicação adequada sobre como Deus usaria um método tão cruel para criar”, afirma Giberson.
“A evolução teísta não fez muito progresso em desenvolver uma explicação convincente sobre como Deus cria por meio da evolução.”
Karl Giberson, autor de “Saving Darwin” e ex-presidente da Fundação BioLogos
A política e a ideologia entram em jogo considerando que, ao menos nos EUA, há certa pressão para as pessoas adotarem o “pacote completo” quando se identificam com um lado do espectro político (com o criacionismo, por exemplo, fazendo parte do “pacote” direitista-conservador), afirma Giberson; a “evolução teísta”, sendo um meio-termo, seria menos atrativa exatamente por isso.
O autor canadense ainda lembra que a quantidade dos chamados “nones”, pessoas sem nenhuma afiliação religiosa, está em alta nos EUA. “Diretamente ligado a esse fenômeno está um incômodo que muitos têm sobre o apoio evangélico a Donald Trump. Muita gente está abandonando o evangelicalismo, e acredito que parte dessas pessoas não está migrando para denominações cristãs mais liberais, e sim deixando o cristianismo de vez. Essas pessoas naturalmente responderiam que houve a evolução sem nenhuma participação divina”, pondera Giberson.
Ele completa dizendo que a categoria da “evolução sem participação divina” não necessariamente indica ateísmo. “Ken Miller, um dos principais defensores da compatibilidade entre evolução e cristianismo, diz que não faz sentido falar em ‘evolução teísta’. Não falamos em ‘cosmologia teísta’, nem ‘mecânica quântica teísta’, então por que aplicar isso à evolução?”, finaliza.
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