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Papa Francisco durante o funeral do cardeal Elio Sgreccia, ex-presidente da Pontifícia Academia para a Vida.
Após a missa celebrada pelo cardeal Giovanni Re, o papa Francisco celebrou os ritos finais do funeral do cardeal Elio Sgreccia.| Foto: Tiziana Fabi/AFP

Na quarta-feira passada, dia 5, faleceu o cardeal Elio Sgreccia, aos 90 anos, um gigante da bioética e autor de um manual que ainda hoje é referência para quem estuda o tema. Assim que São João Paulo II quis constituir a Pontifícia Academia para a Vida, em 1994, o papa quis contar com o bispo, colocando-o na vice-presidência da entidade comandada brevemente pelo francês Jerôme Lejeune (outro monstro sagrado da luta pela vida) e, depois, por Juan Vial Correa. Em 2005, Sgreccia já tinha atingido os 75 anos, idade em que os bispos apresentam sua renúncia ao papa, mas João Paulo II não quis saber de dar descanso a um colaborador tão fiel, nomeando Sgreccia presidente da Academia, cargo que ele ocupou até 2008, quando completou 80 anos. Dois anos, em reconhecimento a seus serviços, Bento XVI fez dele um cardeal não eleitor. O oncologista Cicero Urban, professor da Universidade Positivo, diz que foi um "privilégio" ter sido aluno de Sgreccia. "Muito ativo defensor da vida e da dignidade da pessoa humana , era respeitado mesmo entre aqueles que eram contrários à sua linha de pensamento", afirmou.

A bioética como campo de estudo e a defesa da vida desde a concepção até a morte natural devem muito a Elio Sgreccia, sempre disposto a combater ao lado de João Paulo II contra o que o papa chamava de "cultura da morte". Imagino como devem ter lhe doído as barbeiragens cometidas por seu sucessor na Academia, o arcebispo Rino Fisichella, que felizmente não durou mais de dois anos no cargo, sendo transferido para outro posto dentro do Vaticano. Na qualidade de presidente de honra da Academia, Sgreccia também viu o órgão que presidiu ser absorvido por um novo dicastério criado pelo papa Francisco em 2016. O papa, aliás, realizou os ritos finais do funeral de Sgreccia, após missa celebrada na Basílica de São Pedro pelo cardeal Giovanni Re – o texto da homilia foi publicado pelo jornalista Robert Moynihan.

À primeira vista, parece que as discussões bioéticas, ainda que esse campo esteja muito mais para a filosofia que para a religião, reforçam o paradigma do conflito entre ciência e fé. Seria um caso clássico em que a religião, ao se basear nas reflexões da bioética para se opor a determinadas práticas e técnicas, estaria atrapalhando o progresso científico. Para mim, essa descrição está muito distante da verdade e serve apenas a quem deseja tirar do caminho as perguntas inconvenientes que nos impedem de cair no puro tecnicismo ou na tecnocracia. Vejo a bioética mais como uma oportunidade de diálogo e colaboração entre filosofia, religião e ciência. Esta última nos ajuda a compreender melhor o que é a vida, quando surge, como se desenvolve, mas a convicção fundamental sobre a dignidade do ser humano, e o que ela representa, vem da filosofia. A bioética constrói pontes e, se por vezes assume um caráter mais combativo, ela o faz porque as ameaças à dignidade humana assumem dimensões que exigem reação firme.

Cardeal Elio Sgreccia, ex-presidente da Pontifícia Academia para a Vida.
Sgreccia foi presidente da Pontifícia Academia para a Vida por três anos, mas dedicou décadas à defesa da vida humana. (Foto: Flickr/PAV)

O padre Hélio Luciano de Oliveira, da Arquidiocese de Florianópolis, acabou de receber o grau de doutor em Teologia na Espanha com uma tese sobre a pressão para se liberar o aborto nos casos em que a gestante contraiu o zika vírus. O sacerdote conheceu pessoalmente Elio Sgreccia e, a pedido do Tubo de Ensaio, escreveu um texto sobre o cardeal.

Perdemos um combatente na terra, ganhamos um no céu

Hélio Luciano de Oliveira

Apenas um dia antes de cumprir seus 91 anos, apagou-se nesta terra a vida de uma grande eminência do mundo da bioética, o cardeal Elio Sgreccia. Eminência não somente pelo tratamento dado aos cardeais –diga-se de passagem, tipo de tratamento nunca solicitado por ele –, mas principalmente pela força da sua figura e dos seus ensinamentos.

Não posso dizer que tive com ele uma amizade pessoal, mas de fato o conheci; coincidimos em poucos eventos e algumas vezes conversei com ele por telefone. Já tinha uma certa idade, mas seus olhos manifestavam uma profunda inteligência e uma certa “malandragem” italiana, que fugia dos padrões estabelecidos e que dava a ele o direito de falar suas impressões com uma autoridade que ia muito além da formalidade das funções que exercia ou que tinha desempenhado. Era aquela autoridade presente em poucos, que vem do profundo conhecimento daquilo que afirma. Não poucos problemas teve ele por ser tão sincero, mas talvez a alegria sempre presente em seu rosto viria desse compromisso com a verdade.

Colaborador direto do papa João Paulo II, Sgreccia ajudou na redação das instruções Donum Vitae e Dignitas personae, e foi o principal redator da encíclica Evangelium vitae, além de ter sido, por muitos anos, vice-presidente e depois presidente da Pontifícia Academia para a Vida. Para não reduzir seu pensamento ao campo eclesiástico, basta citar que foi por muitos anos diretor do Centro de Bioética da Universidade do Sagrado Coração, na Itália (a maior universidade católica do mundo) e membro do Comitê Nacional de Bioética italiano, contribuindo na redação de vários projetos do governo italiano no campo da bioética. Enfim, dono de um currículo invejável e de um conhecimento ainda maior, foi talvez quem mais influiu para a criação e difusão de uma bioética fundamentada nos fatos biológicos, numa antropologia profunda e de corte marcadamente personalista. Este influxo é claramente perceptível pelo fato de que ainda hoje o seu Manual de Bioética – traduzido ao português e presente na grande maioria das bibliotecas das universidades brasileiras e do mundo – continua sendo uma das principais obras deste campo do conhecimento.

Mesmo tendo essas grandes características, as que melhor o definiam eram outras. Creio que o mais marcante em Sgreccia eram a sua memória prodigiosa e a sua humildade. Lembro-me que em 2010, pouco depois do anúncio de que ele seria criado cardeal, liguei para ele felicitando-o. Eu o fiz pela admiração que tinha por ele, mas consciente de que seria uma felicitação a mais de um desconhecido estudante. Para minha surpresa, ele lembrava de detalhes muito concretos de uma conferência em que o acompanhei. Ao fim, me disse: “Padre... tenho 82 anos... isso de 'eminência' não é para mim. Quem recebe este capelo cardinalício não sou eu, mas a bioética”.

Que grata é a lembrança de pessoas brilhantes como foi ele. Que o Senhor o receba e que todas aquelas vidas que foram defendidas pelo seu extenuante trabalho sejam seu tesouro no céu. Requiescat in pace, caro don Elio.

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