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O que o criacionismo e o caso Galileu têm em comum?

Galileu lançou teorias sobre a interpretação da Bíblia que bem poderiam ser usadas pelos criacionistas para abandonar suas ideias erradas. (Foto: Montagem sobre foto de Aman Anderson/Free Images) (Foto: )

Acabo de passar três dias de discussões intensas na segunda conferência nacional da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência. A ABC2 conseguiu trazer um elenco sensacional de palestrantes estrangeiros, entre os quais estava Tremper Longman III, especialista no Antigo Testamento, tradutor de textos bíblicos, autor de um punhado de livros, por exemplo Como ler Gênesis (que comprei e vou resenhar), e um dos organizadores do Dicionário de Cristianismo e Ciência, recém-lançado em português pela Thomas Nelson. As duas palestras de Longman tinham como título “Propósito divino e origem da humanidade: a perspectiva de um estudioso do Velho Testamento sobre evolução” e “Propósito divino e a imagem de Deus: a perspectiva de um estudioso do Velho Testamento sobre Adão e Eva”. Na primeira delas, Longman contou a história de um professor universitário que lhe disse, com toda a franqueza, que a teoria da evolução não estava em crise (uma tradicional alegação criacionista) coisíssima nenhuma, que as evidências eram avassaladoras, enfim, mas que ele tinha optado livremente por recusá-la, por contradizer a Bíblia. Na hora eu pensei “esse cara não conhece São Roberto Belarmino”.

E no instante seguinte me ocorreu um pensamento, o de que toda a controvérsia envolvendo Galileu tinha muito a ver com o criacionismo, especialmente o de Terra jovem. Pude discutir isso com Longman na entrevista que fiz com ele, até porque ele também havia uma breve menção ao caso Galileu na palestra. Óbvio que não fui nem de longe o primeiro a ligar as duas coisas: uma pesquisa bem rápida na internet mostra que esse paralelo já existe há tempo o suficiente para que os criacionistas o rejeitem e respondam com sua própria versão, a de que eles é que deveriam ser comparados ao florentino, por hoje estarem questionando a ciência mainstream da mesma maneira como Galileu fez no século 17. Claro que discordo disso, e no post vou explicar o motivo, elencando algumas das circunstâncias históricas, fazendo a minha avaliação a respeito dos pontos em comum entre os dois casos e as diferenças que também existem entre eles.

A primeira coisa a se lembrar é que nem o heliocentrismo nem a Teoria da Evolução pretendiam ter qualquer implicação religiosa. Nicolau Copérnico tanto não via problema algum com suas ideias que dedicou o De Revolutionibus ao papa Paulo III, e o próprio Charles Darwin escreveu, especialmente em cartas endereçadas a seus amigos, que a evolução não implicava ateísmo, ainda que Darwin lutasse com a ideia de um Deus onipotente e bom que tivesse criado certos tipos de animais, como uma vespinha que depositava seus ovos nas larvas de outros insetos. Além disso, foram as próprias circunstâncias pessoais da vida do naturalista inglês, como a morte de uma filha ainda na infância, que acabaram afastando-o de Deus, e não a sua teoria. A evolução passou décadas sendo aceita com certa tranquilidade por círculos religiosos de várias denominações cristãs (as contestações eram minoria), assim como o heliocentrismo foi livremente discutido nas décadas que se sucederam à publicação da obra de Copérnico, embora os historiadores lembrem que, à época, o Vaticano tinha mais com o que se preocupar, já que a Contrarreforma estava começando.

Mas, nos dois casos, a contradição (aparente) entre as novas teorias e uma interpretação literal da Bíblia vieram à tona. No caso de Galileu, o heliocentrismo parecia negar um punhado de trechos do Primeiro Livro das Crônicas (16,30: “Diante dEle estremece a Terra inteira e não vacila, porque Ele a mantém”, ideia que se repete no salmo 95,10), dos Salmos (92,1: “A terra, que com firmeza Ele estabeleceu, não será abalada”; 103,5: “Fundastes a terra em bases sólidas que são eternamente inabaláveis”), de Eclesiastes (1,5: “O sol se levanta, o sol se põe e se apressa a voltar a seu lugar onde renasce”) e, por último mas não menos importante, a passagem do livro de Josué em que o líder hebreu ordena que o sol pare durante uma batalha (capítulo 10; todos os textos citados no parágrafo são da Bíblia Ave Maria). À medida que os adversários de Galileu iam ficando sem argumentos científicos, começaram a empurrá-lo para o campo escriturístico, como no sermão de Tommaso Caccini baseado justamente no livro de Josué. A famosa carta de Galileu dirigida à grã-duquesa Cristina de Lorena – mãe de Cosimo II, protetor de Galileu – foi motivada justamente pela preocupação sincera dela com a possibilidade de o heliocentrismo resultar em uma desmoralização da autoridade da Escritura. É a mesma preocupação de vários criacionistas, para quem a Teoria da Evolução ataca diretamente a autoridade bíblica ao apresentar uma história bem diferente daquela que aparece nos relatos da criação em Gênesis 1 e 2, com um efeito dominó que prejudicaria até mesmo a crença na necessidade da redenção.

Tremper Longman III, estudioso do Antigo Testamento

Tremper Longman III, em suas palestras, ofereceu suas visões a respeito da evolução e de Adão e Eva, a partir do relato bíblico da criação. (Foto: Adriano Fros/Divulgação/ABC2)

Os dois casos começam a se diferenciar na maneira de encarar a possibilidade de erro na interpretação da Escritura. E aqui voltamos ao cardeal Belarmino, que citei no primeiro parágrafo. Chefe da Inquisição durante o primeiro processo de Galileu, ele escreveu ao provincial carmelita Antonio Foscarini nos seguintes termos: “Digo que, se houvesse verdadeira demonstração de que o Sol esteja no centro do mundo e a Terra no terceiro céu, e de que o Sol não circunda a Terra, mas a Terra circunda o Sol, então seria preciso proceder com muita atenção na explicação das Escrituras que parecem contrárias e dizer, antes, que não as entendemos, do que dizer que é falso aquilo que se demonstra”. Ou seja, se a evidência científica for avassaladora, é caso de rever a interpretação da Escritura.

Aqui, temos de fazer duas ressalvas. Uma, a de que Belarmino não acreditava que Galileu tivesse essa prova definitiva, e ele de fato não a tinha. Duas, que pouco antes desse trecho Belarmino havia escrito que, para ele, se a questão do movimento dos astros “não é matéria de fé ‘por parte do objeto’ [ou seja, não trata de assuntos diretamente ligados à salvação], é matéria de fé ‘por parte de quem fala’ [o Espírito Santo]”. Avançou bastante o sinal aqui, mas o principal disso tudo é que Belarmino, ao mesmo tempo em que defende a autoridade da Escritura, admite a possibilidade de a interpretação corrente ser equivocada e precisar ser revista à luz das novas descobertas científicas.

A atitude dos criacionistas é bem diferente. Uso aqui a Declaração de Chicago sobre a Inerrância da Bíblia e, para não correr o risco de cometer algum erro de tradução, uso o texto em português encontrado no site da Editora Monergismo. Vejamos alguns trechos (grifos sempre meus):

“As Escrituras Sagradas, sendo a própria Palavra de Deus, escritas por homens preparados e supervisionados por Seu Espírito, possuem autoridade divina infalível em todos os assuntos que abordam“;

“Tendo sido na sua totalidade e verbalmente dadas por Deus, as Escrituras não possuem erro ou falha em tudo o que ensinam, quer naquilo que afirmam a respeito dos atos de Deus na criação e dos acontecimentos da história mundial, quer na sua própria origem literária sob a direção de Deus, quer no testemunho que dão sobre a graça salvadora de Deus na vida das pessoas.”

Artigo XII: “Negamos que a infalibilidade e a inerrância da Bíblia estejam limitadas a assuntos espirituais, religiosos ou redentores, não alcançando informações de natureza histórica e científica. Negamos ainda mais que hipóteses científicas acerca da história da terra possam ser corretamente empregadas para desmentir o ensino das Escrituras a respeito da criação e do dilúvio.”

“(…) inerrante significa a qualidade de estar livre de toda falsidade ou engano e, dessa forma, salvaguarda a verdade de que as Santas Escrituras são totalmente verídicas e fidedignas em todas as suas afirmações“.

Dá para se basear na Declaração de Chicago e mesmo assim negar a interpretação 100% literal do relato da criação? Até dá, pois a explanação diz que “ao determinar o que o escritor ensinado por Deus está afirmando em cada passagem, temos de dedicar a mais cuidadosa atenção às afirmações e ao caráter do texto como sendo uma produção humana. Na inspiração Deus utilizou a cultura e os costumes do ambiente de seus escritores, um ambiente que Deus controla em Sua soberana providência; é interpretação errônea imaginar algo diferente. Assim, deve-se tratar história como história, poesia como poesia, e hipérbole e metáfora como hipérbole e metáfora, generalização e aproximações como aquilo que são, e assim por diante”. Mas é um trabalho bem complicado. Vejamos, por exemplo, o artigo XII citado acima: hipóteses científicas não podem desmentir o ensino bíblico sobre a criação e o dilúvio. Mas qual é, exatamente, esse ensino? Para quem defende que a Bíblia efetivamente ensina a criação em seis dias de 24 horas, o homem surgido do pó da terra e tudo o mais, mesmo que a evidência a favor da evolução fosse ainda mais forte do que é hoje, quem adere à Declaração de Chicago não teria como aceitar a evolução como verdadeira. Isso nos traz de volta à história que o professor Longman contou em sua palestra e acentua essa diferença radical: enquanto em um caso admite-se a possibilidade de as descobertas científicas influenciarem uma reinterpretação da Escritura, em outro essa porta está totalmente fechada.

Hoje ninguém mais lê literalmente os trechos da Bíblia sobre o movimento do Sol; podemos esperar o mesmo sobre os relatos da criação? (Imagem: Reprodução)

Há alguma saída para resolver o impasse? Nas suas cartas, Galileu propôs o que ficou conhecido como “princípio da irrelevância”. Ele admitia a autoridade da Bíblia tanto quanto os signatários da Declaração de Chicago a admitem. Para Galileu, se Deus é o autor da Escritura, é óbvio que ela não contém erro. Mas as interpretações podem errar. Nesse caso, quais os guias mais seguros para essa interpretação? Primeiro, Galileu faz uma distinção entre aqueles conteúdos que são necessários à salvação e aqueles considerados “irrelevantes”, algo de que Santo Agostinho (amplamente citado pelo astrônomo florentino, diga-se de passagem) já tinha tratado em seus escritos. No primeiro grupo estão as verdades sobre Deus, sobre a Encarnação do Verbo, sobre a Redenção, sobre nossa relação com Deus, sobre como devemos proceder para salvar nossa alma, o que fazer e o que evitar, e assim por diante. As considerações sobre o mundo natural, aí incluído o movimento dos astros, estariam na segunda categoria. Se tais assuntos fossem necessários à salvação, a Escritura teria se debruçado sobre eles com muito mais detalhe.

Quanto ao primeiro grupo, Galileu reconhece a autoridade da Igreja e dos teólogos na interpretação. Mas, “nas discussões de problemas concernentes à Natureza, não se deveria começar com a autoridade de passagens das Escrituras, mas com as experiências sensíveis e com as demonstrações necessárias (…) não pretendo com isso concluir que não se deve ter suma consideração pelas passagens das Sagradas Escrituras. Pelo contrário, tendo chegado à certeza de algumas conclusões concernentes à Natureza, devemos servir-nos delas como meios muito adequados para a verdadeira exposição destas Escrituras e para a investigação dos sentidos que nelas estão necessariamente contidos, pois elas são perfeitamente verdadeiras e concordes com as verdades demonstradas”, escreve Galileu à grã-duquesa Cristina, enunciando também o “princípio da acomodação”: não sendo a Bíblia um texto científico, as suas partes “científicas” precisam ser lidas de acordo com a evidência experimental, bem em linha com o que dizia Belarmino.

Como diz a frase atribuída ao cardeal Baronio e citada por Galileu, “a intenção do Espírito Santo é ensinar-nos como se vai ao céu, e não como vai o céu”. Mas, e no caso da criação, qual a intenção do Espírito Santo? Certamente, a de nos mostrar que Deus é o criador do universo; que o homem é especialmente querido por Deus, feito à Sua imagem e semelhança e criado para ter um relacionamento único com Ele; que temos uma relação especial com a natureza, sobre a qual temos autoridade e da qual somos guardiães e protetores. O essencial está aí; o resto é acessório e, assim como deixamos a evidência empírica nos mostrar que é a Terra que gira em torno do Sol, ao contrário do que parecem dizer as Escrituras, deveríamos deixar a ciência cuidar disso também na hora de descrever o início do universo e da Terra, como a matéria orgânica surgiu, como apareceu a variedade da vida na Terra, como apareceram os primeiros Homo sapiens. Mas também é preciso admitir, e isso apareceu na entrevista que fiz com Longman, que há uma diferença razoável entre afirmações sobre o movimento dos astros e afirmações sobre a nossa própria natureza, quem somos, de onde viemos; em resumo, estamos tratando de temas bem mais sensíveis e que falam bem mais fundo à alma humana.

Em 1616, Galileu foi condenado nem tanto por defender o sistema copernicano, mas por desobedecer o decreto do Concílio de Trento que proibia aos leigos a interpretação da Bíblia; e, em 1632, foi condenado por desobedecer a ordem de 1616 que o proibia de defender publicamente o copernicanismo. Mas tudo isso ocorreu porque na época prevaleceu o literalismo. Bem depois de Galileu, vieram as evidências completas sobre o movimento da Terra, e hoje você não vê quase nenhum literalista bíblico defendendo o geocentrismo (quase, porque tem o maluco do Robert Sungenis). No caso dos criacionistas, não é que eles desprezem totalmente a ciência; do contrário, não tentariam estabelecer uma “ciência criacionista” para dar alguma autoridade a suas alegações. Claro, esse tipo de “ciência” só pode ser citada entre aspas mesmo, pois não parte de uma hipótese para chegar a uma conclusão, e sim o contrário. Mas a “ciência criacionista” é o de menos, facilmente refutável. O desafio é outro: sem que os criacionistas aceitem, em primeiro lugar, abandonar o literalismo total na leitura do relato da criação, qualquer evidência científica em favor da evolução será simplesmente ignorada.

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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