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O que um multiverso nos diria sobre Deus?
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Muita gente já parou para perguntar se não estamos sozinhos no espaço. Mas recentemente uma outra pergunta, ainda mais ampla, ganha algum terreno entre cientistas: e se o nosso universo não for o único? A ideia de um multiverso faz cientistas quebrarem a cabeça, e por causa dela teólogos também começaram a pensar nas consequências da possível existência de universos paralelos.

A ciência

O astrofísico Laerte Sodré Junior, professor do Departamento de Astronomia do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, adianta que qualquer hipótese científica de multiverso não passa de especulação, considerando as teorias e a tecnologia que temos atualmente. “Esse ano estamos comemorando Galileu, que foi um dos precursores do método científico, mas o problema da hipótese do multiverso é justamente o fato de ela não poder ser comprovada por este método”, afirma.

Segundo Sodré, uma das principais bases para as hipóteses de multiverso é a chamada “teoria das cordas”. O apelo dessa teoria é se propor a ser o que o astrofísico chama de “o Santo Graal” da Física. “Hoje nós temos a mecânica quântica, muito bem-sucedida em relação ao mundo subatômico; e a Teoria da Relatividade Geral, que explica o mundo que vemos e as realidades ainda maiores. O problema é que elas são inconsistentes entre si. A teoria das cordas é uma tentativa de criar uma teoria quântica da gravitação que funcione tanto no micro quanto no macro”, diz o cientista.

A teoria (para entender melhor, confira essa excelente infografia) propõe que, em vez de partículas, existem cordas unidimensionais, que se manifestam como partículas dependendo da maneira como “vibram” – uma analogia é feita com a corda de um instrumento musical, que produz sons diferentes de acordo com a maneira como é acionada. Na teoria, uma mesma corda poderia se manifestar como diferentes tipos de partículas, se “vibrasse” de formas diferentes. Sodré explica que, na teoria, essas cordas são minúsculas, da ordem de 10 elevado a –33 centímetros. Se universos são enormes, e as cordas são minúsculas, não é o tamanho delas que permite pensar no multiverso. A chave tem de estar em outro aspecto da teoria.

E uma consequência da teoria das cordas, explica Sodré, é que passaríamos a ter não apenas as quatro dimensões que conhecemos hoje (altura, largura, profundidade e tempo), mas dezenas de outras dimensões – de 10 a 26, dependendo do ramo da teoria. O universo que conhecemos é formado pelas quatro dimensões “clássicas” (as outras não existiriam, ou seriam tão “pequenas” que não seriam detectadas), mas nada impediria que outros universos apresentassem outras configurações dimensionais. Segundo este artigo da revista New Scientist, o número de combinações possíveis chega a 10 elevado a 500 – como diz um prêmio Nobel no texto, o número é maior que a quantidade de átomos existentes no universo observável. Sodré acrescenta que esses possíveis novos universos poderiam ter características totalmente diferentes do nosso, inclusive em relação às leis físicas. O problema com tudo isso, lembra o astrofísico, é que até agora não existe nenhuma evidência que comprove nem a teoria das cordas, nem o multiverso. “Dentro da comunidade científica não há consenso. Há cabeças muito brilhantes trabalhando nesta teoria, mas outros a rejeitam. Algumas experiências no LHC podem trazer evidências favoráveis à teoria, embora esse não seja o principal objetivo do colisor”, explica Sodré.

Uma outra hipótese de multiverso parte do conceito de “inflação”, relacionado à expansão do universo. “Se o universo é infinito, há regiões dele que nunca entrarão em contato”, afirma Sodré. Ele lembra o conceito de “horizonte”, o limite do universo observável. “Se houver regiões no cosmo cujos horizontes nunca se encontrem, então podemos falar de outros universos, embora, na verdade, todos sejam parte de um mesmo universo”, acrescenta. Neste caso, as leis da Física se aplicariam da mesma forma nesses diferentes universos. Sodré considera essa uma hipótese mais consistente com as teorias atuais, embora também não haja nenhuma evidência de que algo além do nosso atual horizonte cósmico possa vir a ser observado – até porque se alguma coisa no espaço pode ser observada ou detectada daqui, está dentro do nosso horizonte e, consequentemente, pertence ao nosso universo “local”.

A religião

Benett

Para o padre Celso Nogueira, especialista em ciência e religião, ainda é muito cedo para pensar em implicações teológicas de uma teoria que não tem nenhuma evidência a seu favor. “Assim como está por demonstrar que o modelo das cordas finalmente vai ser a teoria de síntese entre Relatividade e Física Quântica, menos legítimo ainda me parece tomar o número de possíveis ‘dimensões’ presentes nas diversas teorias de cordas e extrapolar falando de um igual número de universos. Em vista disso, o cúmulo da extrapolação ainda seria fazer teologia sobre o multiverso. Um pouco como aconteceu com Teilhard de Chardin ao teologizar sobre o Homem de Piltdown, que no fim era uma fraude”, alerta o sacerdote, que é membro dos Legionários de Cristo em Curitiba. “Como sabemos, a matéria-prima, por assim dizer, da Teologia é a revelação em suas fontes (Escritura e Tradição). Nelas não está toda a verdade possível, mas a ‘verdade salvífica’, ou seja, a que interessa à nossa salvação”, acrescenta o padre Celso. “Diante disso, não me parece que haja algum obstáculo teológico à existência de outros universos. O importante é que isso não afetaria as verdades da nossa fé, que sempre dizem respeito a nós, homens. Só aumentaria o entendimento do que concretamente constitui a criação”, conclui o sacerdote.

No entanto, outros teólogos já começaram a debater sobre o tema. Um ataque à teoria de multiverso veio do cardeal austríaco Christoph Schönborn. O arcebispo de Viena escreveu, em um artigo de 2005 no New York Times: Agora, no início do século 21, diante de alegações científicas como o neodarwinismo ou a hipótese cosmológica do multiverso, inventada para evitar a avassaladora evidência de um propósito e um design, encontrada pela ciência moderna, a Igreja Católica defenderá novamente a razão humana ao proclamar que o design imanente e evidente na natureza é real. De fato, o nosso universo parece ter sido “feito” para nós: se as leis da Física, as constantes, as características da matéria fossem ligeiramente diferentes do que são, não existiríamos – nem nós, nem muita coisa. Essa “sintonia fina” do universo costuma ser usada como alegação em favor de uma inteligência suprema. Mas, se nosso universo deixa de ser o único para ser apenas um, dentro de um cenário de gazilhões de outros universos, é muito mais plausível que o nosso universo seja o que é por mero acaso.

Mas o físico Don Page, cristão evangélico e professor da Universidade de Alberta (Canadá), discorda da abordagem de Schönborn. Para um congresso promovido pelo departamento de Física de uma faculdade evangélica em Illinois (EUA), Page preparou uma palestra chamada Does God so love the multiverse (escolha: ouça em mp3 ou veja o PDF, que parece mais uma apresentação de Power Point). Ele afirma que, vá lá, a teoria de multiverso pode derrubar o argumento da sintonia fina. “Mas a perda de um argumento não significa que a conclusão seja necessariamente falsa”, diz Page. Em outras palavras, por que Deus não poderia ter criado a coisa toda? É por isso que o físico canadense acredita que o cristão não tem por que temer o multiverso. É basicamente a mesma visão do astrofísico Jeffrey Zweerink, da organização criacionista Reasons to Believe, para quem qualquer modelo de multiverso ainda requer um começo e revela certo design. Também na mesma linha, o padre Celso Nogueira ainda acrescenta: “o princípio antrópico é sempre uma visão da Física, que certamente se alinha com o pensamento teológico ao reintroduzir o discurso (mais metacientífico e filosófico) do finalismo na origem do mundo físico. Esse princípio ficaria certamente relativizado diante de um multiverso, mas derrubar uma perspectiva finalista na Física não é o mesmo que derrubar o finalismo em absoluto.”

Mas em sua apresentação, Don Page levanta uma outra questão teologicamente intrigante: havendo vida inteligente no multiverso, como se aplicam as doutrinas relativas ao pecado original e à redenção de Cristo? Essa pergunta já foi feita, pelo L’Osservatore Romano, ao padre José Funes, diretor do Observatório Vaticano. Depois que o padre fala da possibilidade de ETs tão ou mais evoluídos que nós, o repórter continua:

Isso não poderia ser um problema para nossa fé?
Acredito que não. Assim como existe uma série de criaturas na Terra, poderia haver outros seres, também inteligentes, criados por Deus. Isso não contrasta com nossa fé porque não podemos colocar limites na liberdade criadora de Deus. Para dizer como são Francisco, se consideramos as criaturas terrenas como “irmão” e “irmã”, por que não poderíamos falar de “irmão extraterrestre”? Ele também seria parte da criação.

E quanto à redenção?
Nós usamos a imagem evangélica da ovelha perdida. O pastor deixa as 99 no aprisco para procurar aquela que se perdeu. Pode ser que no universo haja 100 ovelhas, correspondentes a diversas formas de criaturas, e nós, a raça humana, poderíamos ser exatamente aquela que se extraviou, pecadores que precisam de um pastor. Deus se tornou homem em Jesus para nos salvar. Assim, caso existam outros seres inteligentes, talvez eles não tenham a necessidade de redenção, podem ter permanecido na amizade plena com o Criador.

Benett

Permita-me insistir: se eles fossem pecadores, a redenção seria possível também a eles?
Jesus se encarnou uma vez, e por todos. A encarnação é um evento único e irrepetível. Então posso dizer com certeza que eles, de alguma maneira, teriam a possibilidade de desfrutar da misericórdia divina, assim como nós, humanos.

As afirmações do padre Funes refletem, claro, sua opinião pessoal, até porque duvido que o Vaticano tenha pronunciamento oficial sobre o assunto. A entrevista não fala de multiverso, mas me parece que esse tipo de questão teológica independe de a vida extraterrestre estar neste ou em outro universo. O padre Celso finaliza dizendo que o mesmo raciocínio feito por ele em relação ao impacto do multiverso serviria também para a vida extraterrestre inteligente.

E então? Vocês consideram a hipótese de multiverso plausível ou apenas excesso de imaginação? Que outros dilemas teológicos seriam criados pela existência de vários universos? As explicações do padre Funes, Don Page e Jeffrey Zweerink convencem? O cardeal Schönborn tem razão em falar de “hipótese inventada para contestar a evidência do design”?

PS: pois é, o blog ficou sem atualizar por alguns dias. Como eu cheguei a comentar antes, estou trabalhando em vários posts com material exclusivo, preparado especialmente para o blog; esse post do multiverso é só o primeiro.

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