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Leão XII, papa entre 1823 e 1829.
Leão XII morreu em 1829, e primeira referência à suposta proibição da vacina contra a varíola é de 1879.| Foto: Wikimedia Commons

Sábado passado, na live de que participei com o Alexander Moreira-Almeida e o Lucas Miranda, do Núcleo de Pesquisa em Espiritualidade e Saúde (Nupes) da Universidade Federal de Juiz de Fora, falamos um pouco sobre a fake history de ciência e fé. Comentamos sobre os casos mais célebres – Galileu, Giordano Bruno, terra plana, isso tudo que vocês já conhecem – e acrescentei que fatalmente, em meio à corrida pela vacina contra a Covid-19, há de retornar à imprensa uma outra lorota: a de que o papa Leão XII, em 1829, teria proibido a vacinação contra a varíola nos Estados Pontifícios, ou teria proibido os católicos de se imunizar.

Fiz uma pesquisa breve na internet e parece que o mito ainda não ressurgiu das cinzas nessa época de pandemia. Mesmo assim, dada a insistência com que a fake history reaparece na imprensa de tempos em tempos, eu ficaria muito surpreso (mas também feliz) caso Leão XII não fosse invocado como mau exemplo em breve. Por isso, vamos nos vacinar contra a mentira. Já tratamos desse assunto aqui no blog, mas foi em mais de um texto, e tudo publicado há um bom tempo, em 2011 e 2015. Por isso, achei melhor reunir toda a informação em uma nova postagem.

A lenda

Basicamente, o que diz o mito é que o papa Leão XII, em 1829, pouco antes de morrer (ele faleceu em fevereiro daquele ano), teria se expressado contra a vacinação com essas palavras: “Quem quer que recorra à vacina deixa de ser filho de Deus (…) a varíola é um juízo de Deus (…) A vacina é um desafio lançado ao céu”. Como consequência, a varíola teria varrido os Estados Pontifícios nos anos seguintes. A vacina contra a varíola havia sido desenvolvida em 1796, por Edward Jenner, em substituição ao método da variolação, que consistia em inocular quantidades mínimas do vírus nas pessoas com o objetivo de desenvolver uma resposta imunizante.

As fontes

A primeira coisa que chama a atenção neste caso é que não existe absolutamente nenhuma fonte primária – bula, discurso, decreto, encíclica, o que for – contendo a tal proibição, o que, no caso do Vaticano, em que tudo é registrado por escrito, praticamente equivale a um atestado de inexistência. Além disso, não há nem mesmo registros extraoficiais, de historiadores ou cronistas contemporâneos a Leão XII, o que provavelmente teria ocorrido caso o papa realmente tivesse tomado tal decisão.

O blogueiro Humphrey Clark, cujo texto sobre o tema, publicado em 2009, foi um dos primeiros que eu li quando esbarrei na lenda, afirma que a primeira menção conhecida à tal proibição é de 1879 e está em uma biografia do rei Vítor Emanuel II escrita pela britânica Georgina Sarah Godkin, que pertencia a uma corrente altamente ideologizada de historiadores chamada Whig history. Segundo ela, “em sua insensata fúria contra o progresso, ele [Leão XII] proibiu a vacinação; consequentemente, a varíola devastou as províncias romanas durante seu reinado”. Clark afirma que Leão XII era um papa bastante austero e um tanto autoritário e moralizador, o que não caía muito bem para a intelligentsia europeia da época e fazia dele um alvo fácil de atacar com alegações que, se não eram verdadeiras, eram ao menos bem verossímeis.

Já em 1986 a suposta proibição tinha chamado a atenção do jesuíta Donald Keefe, que descreveu em um artigo sua busca pela fonte original da história, que ouvira em uma palestra. Ele entrou em contato com o palestrante, que lhe enviou as referências, e a partir daí Keefe reconstruiu a cadeia de citações até chegar a um livro de um certo Pierre Simon, datado de 1966. Ali ele se viu em um beco sem saída – provavelmente, desconhecia o livro de Georgina Godkin.

Keefe tem uma hipótese muito plausível para o fato de essa lenda ter sido tão popular nos anos 60 do século passado. Em 1968, o papa Paulo VI encerrou um longo debate interno na Igreja a respeito dos meios artificiais de contracepção, publicando a corajosa (e profética) encíclica Humane Vitae. E muitos dos textos encontrados por Keefe em sua pesquisa eram não sobre a vacinação, mas sobre contracepção, e escritos por autores contrários à doutrina expressa na Humanae Vitae. Para o jesuíta, a estratégia era atirar em Leão XII para acertar Paulo VI: segundo esses autores, se a Igreja já tinha se equivocado quando à vacinação no século 19, por que não estaria errada agora sobre a contracepção?

Se a história da proibição é mentira, qual é a verdade?

Continuamos com as fontes citadas por Humphrey Clark. Em 2008, a Revue d’Histoire Ecclésiastique publicou o artigo “Pratique de la vaccination antivariolique dans les Provinces de l’État pontifical au 19e s. Remarques sur le supposé interdit vaccinal de Léon XII”, de Yves-Marie Bercé e Jean-Claude Otteni. Antigamente havia um PDF disponível com o texto completo do artigo, mas o link não funciona mais e agora o conteúdo parece ter acesso restrito. Ficamos, então, com o resumo oferecido por Clark. Ainda em meados do século 18, o papa Bento XIV já tinha levado o método da variolação aos Estados Pontifícios; quando surgiu a vacina contra a varíola, o Estado papal esteve entre os países que a adotaram, graças ao papa Pio VII, antecessor imediato de Leão XII. Havia até mesmo um centro de vacinação no Hospital do Espírito Santo, perto do Vaticano, e em 1821 foi estabelecido um Conselho de Vacinação.

Mas tudo isso é anterior a Leão XII. E depois? Depois continuou tudo como estava. Em 1824, já no pontificado de Leão XII, o médico Luigi Sacco afirmava que praticamente todos os recém-nascidos em Roma eram vacinados a ponto de já não se temer a varíola. Não há nenhum registro de interrupção da prática de vacinação, nem de surtos de varíola ou número incomum de mortes durante as décadas de 1820 ou 1830. Pelo contrário: um estudo de 1838 (nove anos após a morte de Leão XII) afirmou que os Estados pontifícios não deviam nada ao restante da Europa ocidental em termos médicos.

A lenda foi especialmente popular nos anos 60 porque a estratégia era atirar em Leão XII para acertar Paulo VI, que havia publicado uma encíclica sobre a contracepção

Em resumo: a história da proibição é falsa, não existe nenhuma fonte primária nem contemporânea que a confirme, a primeira menção conhecida é de 50 anos depois e escrita por alguém bastante enviesado, e na verdade as políticas sanitárias dos Estados Pontifícios eram bastante elogiadas antes, durante e depois da passagem de Leão XII pelo pontificado.

Bônus: a versão de Jô Soares

Talvez alguém lembre de uma versão um pouquinho diferente da lenda. Em 2012, quando foi ao Programa do Jô lançar um novo livro, o padre Reginaldo Manzotti foi surpreendido com a informação de que o papa Pio X tinha proibido Louis Pasteur de aplicar vacinas. Está no minuto 5:38 do vídeo: “vacina era um anátema, era um perigo, era um pecado”, diz o apresentador. O padre Reginaldo acaba desviando do assunto, fala um pouco de “descontextualização”, e nem temos como culpá-lo de nada; você está lá para falar de outra coisa, é pego de surpresa com uma alegação da qual você não sabe bulhufas, não vai tentar rebater; talvez, no máximo, perguntar a fonte.

Mas, se alguém vier lhe questionar com essa versão da lenda, guarde na ponta da língua a pergunta: como isso teria sido possível, se Louis Pasteur morreu em 1895 e Pio X foi eleito papa em 1903? Seu interlocutor vai ter de pesquisar. Aproveite para avisá-lo: se por acaso ele descobrir que essa história da vacina envolvia outro papa, um certo Leão XII, pode descartar, porque isso aí é fake history.

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