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O papa Francisco diante do crucifixo de San Marcello al Corso, durante cerimônia no Vaticano.
O papa Francisco diante do crucifixo de San Marcello al Corso, durante cerimônia no Vaticano.| Foto: Yara Nardi/Pool/AFP

Depois da bênção urbi et orbi concedida pelo papa Francisco no dia 27 de março, com orações diante do crucifixo milagroso de San Marcello al Corso, a Congregação para o Culto Divino aprovou nesta semana e mandou publicar uma missa pelo fim de pandemias. O cardeal Robert Sarah, prefeito da congregação, explicou em um decreto que estava recebendo pedidos do mundo inteiro para que o Vaticano aprovasse textos litúrgicos para a celebração de missas especialmente nessa intenção.

Aqui cabe uma pequena explicação: a liturgia católica tem o seu calendário, com as festas, as celebrações dos santos e da Virgem Maria, mas também tem uma série de missas com intenções específicas, seja na celebração de algum sacramento como o matrimônio ou a crisma, seja em ocasiões como a dedicação de uma igreja, inaugurações de edifícios com determinadas finalidades, seja para pedir ou agradecer a Deus por algo – há missas, por exemplo, pelos doentes, pelos exilados, pelos que passam fome, após uma colheita, em tempo de guerra... pode até ser surpreendente que ainda não houvesse uma missa em caso de peste ou pandemia, mas acho que desde a reforma litúrgica de 1969 o mundo não passou por nada semelhante ao que estamos vivendo agora. Talvez na forma extraordinária estivesse prevista alguma missa contra pestes, mas não tenho como garantir.

O decreto do cardeal Sarah e a missa propriamente dita (ou seja, as orações e leituras) estão nos PDFs no fim deste texto. Eu até gostaria que a oração da coleta (aquela feita imediatamente antes das leituras bíblicas) mencionasse mais explicitamente o pedido pelo fim súbito e imediato (e, portanto, milagroso) da peste, mas dou-me por satisfeito com a afirmação do cardeal Sarah que a intenção da missa é justamente essa.

Bolsonaro e o dia de jejum e oração

Em entrevista à rádio Jovem Pan nesta quinta-feira, o presidente Jair Bolsonaro mencionou um dia de jejum e oração pelo fim da pandemia do coronavírus (confira lá aos 32 minutos e 40 segundos). Não fica muito claro se essa é iniciativa dele ou se ele está apenas endossando algo que partiu de líderes religiosos. Bastou para acender o alerta vermelho entre os laicínicos, que estão rasgando as vestes por aí em zelosa indignação.

Eu, particularmente, não acho que seja papel do líder civil convocar esse tipo de ação; seria melhor a chamada vir explicitamente de bispos ou pastores, e o presidente poderia aderir – ou de forma pública, para dar exemplo, ou de forma privada, na base do “não deixar a mão esquerda saber o que faz a direita”. Mas um amigo me avisa que mesmo John Rawls, cujas teses de filosofia política costumam negar ao Estado qualquer possibilidade de opção por uma determinada concepção de bondade, justiça ou beleza, lembrou que Abraham Lincoln convocou um dia nacional de jejum e dois dias de ação de graças, todos por ocasião da Guerra Civil norte-americana, e não viu problemas nisso. Confiram aí:

Também teríamos de considerar outras maneiras pelas quais as crenças e afirmações religiosas podem ter um papel na vida política. Poderíamos perguntar se o Dia Nacional de Jejum, decretado por Lincoln em agosto de 1861, e suas duas proclamações do Dia de Ação de Graças, em outubro de 1863 e de 1864, violam essa ideia de razão pública. E o que dizer do Segundo Discurso de Posse, com sua profética interpretação (do Antigo Testamento) da Guerra Civil como um castigo de Deus pelo pecado da escravidão, recaindo igualmente sobre o Norte e o Sul? Tendo a pensar que Lincoln não viola a razão pública tal como a discuti e tal como era aplicada em sua época – se violaria na nossa, é uma outra questão –, pois o que ele diz não tem implicações relativas aos elementos constitucionais essenciais, nem a questões de justiça básica. Ou, quaisquer que fossem as implicações, elas certamente seriam firmemente sustentadas pelos valores da razão pública. (Uso a tradução encontrada na tese de doutorado Neutralidade e justificação em John Rawls, de Pablo Camarço de Oliveira. O original está em Deliberative Democracy: Essays on Reason and Politics, editado por James Bohman e William Rehg, página 124).

Mas, bom, o nível médio do debate tupiniquim anda longe de Rawls. Na maior parte do tempo, temos mesmo é de ler coisas como isso aqui:

(A frase que está entre aspas nessa imagem compartilhada não foi dita por Bolsonaro na entrevista; se ele a proferiu em outra ocasião, agradeço se citarem a fonte nos comentários)

Não sei se o país vai colapsar na pandemia, mas a lógica de muita gente me parece que já colapsou. Qual o problema de apoiar jejum e oração contra a pandemia? O tweet só faria sentido se o presidente tivesse abandonado todas as outras estratégias contra o coronavírus e começasse a recorrer apenas à religião, mas nem de longe é o que está ocorrendo. Rezar como se tudo dependesse de Deus e agir como se tudo dependesse de nós (inclusive contando com a ciência e incentivando o trabalho dos cientistas na busca por meios de prevenção, vacinas e curas) é máxima de séculos que continua valendo. Se o presidente está investindo o suficiente na segunda parte do conselho eu deixo para o leitor avaliar, aqui não é o espaço para isso. Mas botar a culpa em quem está incentivando as pessoas a rezar e fazer penitência pelo fim da pandemia além de continuar tomando os cuidados básicos é o bom e velho non sequitur.

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