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Acho que faltou um pouco de luz para o Goldemberg antes se meter a falar de ciência e fé. Foto: Vincenzo Pinto/AFP
Acho que faltou um pouco de luz para o Goldemberg antes se meter a falar de ciência e fé. Foto: Vincenzo Pinto/AFP| Foto:

O Estadão publicou hoje um artigo de José Goldemberg, físico que já foi reitor da USP, ministro da Educação e secretário nacional de Ciência e Tecnologia (antes de a área virar ministério). Chama-se “Einstein, Ratzinger, Hawking: ciência e religião”. Não tinha como eu não ler, certo?

Goldemberg passa boa parte do texto discorrendo sobre as posições de Albert Einstein a respeito da relação entre ciência e fé, da existência (ou não) de uma divindade, se essa divindade é um ser pessoal ou não, enfim, não acrescentou nada que já não fosse conhecido por quem leu a biografia escrita por Walter Isaacson. Mas pelo menos ali o articulista não bagunçou o coreto como faria nos parágrafos seguintes.

Porque é justamente quando ele vai tratar de Joseph Ratzinger, o papa emérito Bento XVI, que a coisa sai completamente dos eixos. Goldemberg o considera o “papa mais culto dos últimos séculos”, o que eu acho bem possível mesmo, e trata da passagem do cardeal alemão pela Congregação para a Doutrina da Fé, “na qual disciplinava os que se afastavam dos caminhos tradicionais da Igreja Católica”. Parece um cara inflexível, não? Mas vejam só! “Surpreendentemente, contudo, nos livros que escreveu Ratzinger tem posições esclarecidas sobre os conflitos entre ciência e religião”, diz Goldemberg.

Surpreendentemente? Por que deveria ser surpreendente que um cardeal cujo ofício era cuidar da ortodoxia da doutrina tenha “posições esclarecidas” sobre ciência e fé? Não sei vocês, mas eu vejo um preconceitozinho implícito aí…

Goldemberg segue falando do caso Galileu e dos escritos de Ratzinger que mencionam a teoria da evolução e a interpretação do relato da criação do mundo. E aí o articulista volta a pisar na bola: “Como se sabe, a ciência já estabeleceu que o nosso universo foi criado numa grande explosão, o ‘big-bang’, cerca de 13 bilhões de anos atrás. Haveria aqui um papel essencial para o criador, que Einstein não nega. Antes de Ratzinger, o papa João Paulo II já havia admitido que esse era o único papel do Criador e o que se seguiu depois da explosão inicial decorre das leis da física, sem a necessidade de invocar Deus a todo instante”.

De onde foi que Goldemberg tirou a ideia de que, para Ratzinger e João Paulo II, o “único papel do Criador” é dar o peteleco inicial no universo? Isso contraria praticamente tudo o que ambos escreveram sobre como Deus age no universo. Milagres, a Providência divina, a vontade de Deus sustentando o universo… Goldemberg não conhece nada disso? Podia ao menos ter perguntado para alguém que conhece um mínimo de doutrina católica, em vez de botar achismo no artigo… e, para piorar, até no “papel essencial” Goldemberg está errado, porque não temos como dizer que Deus é o responsável pelo Big Bang. Deus é responsável por existir algo em vez do nada, mas o Big Bang é início temporal, não origem; pode ter ocorrido sem participação divina nenhuma, como já aprendemos com William Carroll.

O artigo elogia Ratzinger como um “sacerdote inteligente que reconhece que não é necessário invocar o nome de Deus para explicar o que acontece em torno de nós, como a evolução da vida, o movimento dos planetas e a evolução do universo”. O físico não é obrigado a conhecer o conceito de “Deus das lacunas”, mas o que ele descreveu é justamente isso. E, quando ele descobrir que não é nisso que os católicos acreditam, provavelmente também achará surpreendente.

Goldemberg encerra com uma menção ao recentemente falecido Stephen Hawking e sua teoria de que as flutuações quânticas tornam um criador desnecessário. “Essas teorias são controvertidas e aguardam confirmação experimental. Enquanto isso não se concretizar, a polêmica sobre a existência de Deus vai continuar”. Pois é. Se um dia houver confirmação experimental de que o universo pode surgir por meio de flutuações quânticas, o que estará comprovado é justamente isso: que o universo pode surgir por meio de flutuações quânticas. Mais nada. Não vai comprovar que algo pode surgir do nada, porque flutuações quânticas são algo, não o nada. O que eu acho é que “a polêmica sobre a existência de Deus vai continuar” enquanto houver gente dizendo besteira sobre ciência e fé, como Goldemberg.

Hoje é aniversário de Bento XVI: o papa emérito completa 91 anos. Não sei se Goldemberg, ou quem selecionou o artigo para ser publicado hoje, sabia da data. Se foi uma tentativa de homenagear o aniversariante, olha, deveriam ter pensado duas vezes.

Pequeno merchan

Além de editor e blogueiro na Gazeta do Povo, também sou colunista de ciência e fé na revista católica O Mensageiro de Santo Antônio desde 2010. A editora vinculada à revista lançou o livro Bíblia e Natureza: os dois livros de Deus – reflexões sobre ciência e fé, uma compilação que reúne boa parte das colunas escritas por mim e por meus colegas Alexandre Zabot, Daniel Marques e Luan Galani ao longo de seis anos, tratando de temas como evolução, história, bioética, física e astronomia. O livro está disponível na loja on-line do Mensageiro.

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