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D. Pedro I com a Constituição Brasileira de 1824. Quadro de Manuel de Araújo Porto-Alegre, pintado em 1826
D. Pedro I com a Constituição Brasileira de 1824. Quadro de Manuel de Araújo Porto-Alegre, pintado em 1826| Foto: Reprodução

“Dom Pedro Primeiro, por graça de Deus, e unânime aclamação dos povos, imperador constitucional, e defensor perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os nossos súditos, que tendo-nos requeridos o povos deste império, juntos em Câmaras, que nós quanto antes jurássemos e fizéssemos jurar o projeto de Constituição”.

Assim tem início o texto da primeira Constituição do Brasil. Promulgada em 25 de março de 1824, 18 meses após a proclamação da independência do país e um ano após a dissolução da Assembleia Constituinte de 1823, a carta definia que o país teria um governo monárquico, hereditário, constitucional e representativo.

Também estabelecia: “A religião católica apostólica romana continuará a ser a religião do império. Todas as outras religiões serão permitidas com seu culto doméstico, ou particular em casas para isso destinadas”.

Eleições indiretas

Estabelecia também quem eram os cidadãos do país recém-criado: os nascidos no Brasil, os filhos de pai brasileiro ou de mãe brasileira, mesmo nascidos em país estrangeiro, desde que estabeleçam domicílio no país. Inclui também estrangeiros naturalizados e todos os nascidos em Portugal e suas possessões, desde que que já vivessem no país quando da independência.

Organizava a nação em quatro poderes: Legislativo, Moderador, Executivo e Judicial. Estabelecia que os membros da Câmara dos Deputados seriam eleitos para mandatos pré-definidos, enquanto o Senado teria membros vitalícios, que receberiam subsídios financeiros equivalente a 150% dos recebidos pelos deputados. O número de deputados seria sempre o dobro do de senadores.

As eleições eram indiretas: os cidadãos considerados ativos (ou seja, homens, livres, maiores de 25 anos e com renda anual de mais de 100 mil réis) escolhiam os representantes que, por vez, elegiam os deputados e senadores -- estes precisavam ser católicos e ter renda acima de 400 mil réis, além de cumprir os demais pré-requisitos. Na época, o Brasil tinha 4,5 milhões de habitantes, sendo 800 mil índios, 1 milhão de brancos, 1,2 milhão de negros escravos e 1,5 milhão de mulatos, pardos, caboclos e mestiços libertos.

A carta também estabelecia que todo brasileiro poderia ser convocado a pegar em armas para defender sua nação, e que nenhum grupo de militares poderia se reunir sem autorização prévia. Quanto aos juízes, eram nomeados pelo imperador e seus cargos permaneciam vitalícios. A lei previa também a criação do Supremo Tribunal de Justiça.

Depois da tensão de novembro de 1823, quando a Assembleia Constituinte foi cercada pelas tropas imperiais e muitos dos integrantes foram detidos, o imperador criou um conselho de estado que escreveu a carta magna -- ainda assim, ela incorporou muitos dos artigos propostos anteriormente.

Mas havia uma novidade: a fim de garantir o poder do imperador, ainda que blindado por regras e limites, foi concedido a ele o exercício do Poder Moderador. Ele era autorizado a convocar a Assembleia Geral (que reúne deputados e senadores), “quando assim o pede o bem do império”. Também podia dissolver a Câmara dos Deputados, suspender juízes, aprovar ou suspender as decisões dos conselhos das províncias (como eram chamados os estados) e nomear e demitir livremente os ministros de estado.

Propostas inovadoras

Além de estabelecer as bases sobre as quais o novo país funcionaria, a Constituição Brasileira de 1824 foi uma das mais inovadoras de sua época. Em seu artigo 179, por exemplo, ela estabelecia que os direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros eram invioláveis e tinham por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade.

“Nenhum cidadão pode ser obrigado a fazer, ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude da lei”, estabelecia o texto. “Todos podem comunicar os seus pensamentos, por palavras, escritos, e publicá-los pela imprensa, sem dependência de censura”. E mais: “Ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a moral pública”.

Sobre a residência: “Todo o cidadão tem em sua casa um asilo inviolável. De noite não se poderá entrar nela, senão por seu consentimento, ou para o defender de incêndio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a lei determinar”. Além disso, nenhum cidadão poderia ser preso sem “culpa formada”, a não ser em flagrante delito.

Quase duzentos anos atrás, estas propostas não eram comuns, mesmo nos países mais desenvolvidos. Elas se basearam na legislação do Reino Unido. “A Carta Imperial de 1824 foi inspirada no constitucionalismo inglês, segundo o qual é constitucional apenas aquilo que diz respeito aos poderes do Estado e aos direitos e garantias individuais”, escreveu o professor e cientista político Octaciano Nogueira, em artigo sobre o tema, parte do volume I do livro Constituições Brasileiras, produzido pelo Senado Federal.

A nova legislação também representou um avanço na gestão da vida municipal. Estabelecia: “Em todas as cidades e vilas ora existentes, e nas mais que para o futuro se criarem, haverá Câmaras, às quais compete o governo econômico e municipal”. O vereador com mais votos seria o presidente da casa.

Longevidade rara

Ele também lembra que Constituições eficazes tendem a ser longevas. “Afinal, o que se espera de qualquer documento constitucional é que ele possa regular de maneira estável, e sem necessidade de frequentes mudanças, a vida institucional do país, inclusive nos momentos de crise”.

Nogueira lembra que, das oito constituições que o Brasil já teve, esta foi, de longe, a mais longeva: “Ao ser revogada pelo governo republicano, em 1889, depois de 65 anos, era a segunda Constituição escrita mais antiga do mundo, superada apenas pela dos Estados Unidos”. Mais do que isso, recebeu uma única emenda -- a Carta atual, de 1988, já recebeu 111.

“A Constituição de 1824 não serviu apenas para os momentos de estabilidade política”, defende o professor. “Serviu, também, com a mesma eficiência, para as fases de crise que se multiplicaram numa sucessão interminável de revoltas, rebeliões e insurreições, entre 1824 e 1848”.

A carta se manteve válida, inclusive, para o novo país suportar a crise provocada pela ausência do próprio Dom Pedro I enquanto seu filho, Dom Pedro II, não tinha idade para assumir -- iniciado apenas nove anos depois da independência, o chamado Período Regencial se estendeu de 1931 a 1940. A Constituição foi mantida intocada durante a Guerra do Paraguai, o fim do tráfico de escravos e o início da industrialização do país.

O segredo de tamanha estabilidade, afirma Nogueira, está no artigo 178, que determina: “É só constitucional o que diz respeito aos limites e atribuições respectivas dos poderes políticos, e aos direitos políticos e individuais dos cidadãos; tudo o que não é constitucional pode ser alterado, sem as formalidades referidas, pelas legislaturas ordinárias”. Ou seja: havia, na Constituição de 1824, a consciência de que outros aspectos da vida em sociedade não precisariam, necessariamente, pertencer à Carta Magna.

“Era tão plástica a Constituição monárquica que a própria República poderia ter sido implantada no País com uma simples emenda constitucional”, escreve o cientista político. Todos os dispositivos eram reformáveis, inclusive o que consagrava a monarquia como forma de governo”.

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