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Câmara e Senado não se pronunciam em relação a relatório que denuncia censura no país
Câmara e Senado não se pronunciam em relação a relatório que denuncia censura no país| Foto: Gazeta do Povo

O Congresso brasileiro está inerte diante das revelações que têm sido feitas a partir do relatório elaborado e divulgado pelo Comitê Judiciário da Câmara de Representantes dos Estados Unidos, avalia o advogado constitucionalista e especialista em liberdade de expressão André Marsiglia. Em entrevista à Gazeta do Povo, ele questiona o silêncio institucional do Parlamento e vê nessa postura uma das razões pela quais Elon Musk, dono do X, recorreu ao Congresso dos EUA para divulgar a documentação.

O documento, de 541 páginas, traz diversas ordens do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) enviadas para o X (antigo Twitter), algumas das quais solicitavam o banimento de perfis e a retirada de publicações nas redes sociais. Ainda que vários dos ofícios e decisões listados revelem a sanção e banimento de perfis e publicações de parlamentares, até o momento, tanto a Câmara quanto o Senado não emitiram nenhuma nota ou comunicado sobre o tema.

Segundo o advogado, o Congresso brasileiro tem a prerrogativa política de solicitar tais informações, não somente para o X, mas também para o próprio TSE e Supremo Tribunal Federal (STF).

“Fica a nossa grande questão: por que o nosso parlamento não faz essas questões? Eu creio que, talvez, até mesmo essa inatividade institucional do Legislativo seja uma das razões de desestímulo para que, enfim, fossem eles [o Congresso Americano] os procurados para a divulgação de qualquer coisa”.

O relatório decorre das revelações do Twitter Files Brasil, uma iniciativa do jornalista Michael Shellenberger, em parceria com a Gazeta do Povo. Desde o início de abril, têm sido divulgados documentos fornecidos pela plataforma e que revelam as decisões do STF e do TSE para banir perfis, retirar publicações do ar, obter informações sobre usuários, coibir a veiculação de hashtags e de determinados temas, como questionamentos ao sistema eleitoral, críticas ao TSE e ao ministro Alexandre de Moraes, o principal relator dos documentos.

A partir da apuração de divulgação desses elementos, Musk passou a questionar Moraes em seu perfil no X, razão pela qual o ministro o inseriu no inquérito das milícias digitais. Em respostas às declarações de Musk, o Congresso dos EUA solicitou que a empresa enviasse as informações relacionadas ao caso, a partir das quais foi elaborado o relatório em questão, que classifica a ação do TSE como censura ao brasileiros, em especial à direita.

Segundo Marsiglia, diante de um parecer tão grave, a única reação do Parlamento brasileiro é sempre individual, pois nem sequer os partidos ou bancadas se manifestaram.

O jurista afirma que, “do ponto de vista individual há honrosas exceções, mas política não é algo que se faz sozinho. Do ponto de vista coletivo, o Legislativo parece absolutamente inerte em relação a tudo isso que ocorreu”, e destaca que até o próprio STF emitiu uma nota sobre o tema.

Regulação das redes

Recentemente, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL) engavetou o PL 2630/2020, (chamado de PL da Censura ou das Fake News) por falta de consenso entre os líderes e disse que reiniciará do zero as discussões sobre regulação das redes sociais, porém, algumas medidas inseridas nesse projeto foram adotadas pelas altas Cortes da justiça brasileira.

Um exemplo dessa assimilação de prerrogativas é o entendimento e designação por um órgão do que é desinformação – no caso em questão, esse papel parece ter sido desempenhado pela Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação (AEED), criada pelo próprio TSE. Documentos contidos no relatório mostram que a AEED realizou as buscas por perfis e postagens que veiculassem conteúdos assim categorizados, especialmente "desinformação" e "notícias falsas" sobre o processo eleitoral.

Outro ponto que também estava previsto no PL 2630 era o prazo e o limite das multas que as decisões judiciais poderiam aplicar às plataformas por veicularem desinformação, o que foi largamente utilizado nos ofícios e decisões, também a partir do entendimento do próprio TSE.

Segundo Marsiglia, a AEED exerceu um papel similar ao que as Agências de Verificação exerceram anteriormente, quando o TSE se valia de suas apurações para justificar algumas de suas ordens para retirar publicações ou reportagens.

Ocorre que a AEED foi criada pelo próprio TSE, na presidência do ministro Edson Fachin. Segundo o especialista, o TSE acaba não só decidindo o que é desinformação, apurando e julgando os casos em que ela supostamente ocorre. "De acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, essas funções não podem ser exercidas pela mesma instância", ressaltou.

Atuação pouco saudável da AEED

Por ter sido criada e estar atuante, Marsiglia não avalia a AEED como ilegal, mas questiona sua atuação. “Se a gente tem um órgão ligado ao TSE alimentando o Ministério Público eleitoral ou de alguma forma estimulando a pauta ou a reação do TSE, isso me parece muito pouco saudável. Na democracia, precisamos ter uma separação clara entre quem julga e quem apura”.

Novamente, o advogado lança uma crítica ao Congresso Nacional, a quem caberia impugnar, buscar esclarecer ou restringir as funções da Asssessoria. “Mas a gente tem, infelizmente, o Legislativo inativo em relação a essas questões que estão surgindo ultimamente”, comenta.

Outro ponto que segue sem esclarecimento, segundo Marsiglia, é qual instância acionou o TSE ou o STF para agirem em relação a esses casos. Segundo os preceitos jurídicos brasileiros, ambos os Tribunais não podem iniciar uma ação por conta própria, ou agir de ofício, como se fala. Eles precisam ser instigados pelo Ministério Público, Ministério Público Eleitoral ou por algum partido político, por exemplo, para agir.

Como não se tem acesso a maior parte das decisões, não fica claro de onde ou de quem vieram as incitações para que os Tribunais chegassem às decisões de banir perfis e publicações. A instigação pela própria AEED, segundo o jurista, também estaria fora do devido processo legal, pois, assim como no caso da apuração e do julgamento, um órgão do próprio TSE não poderia incitá-lo a agir no que concerne a esse ou qualquer outro tema.

Envio de ofícios requer decisões que os embasem

Ainda sobre o relatório, Marsiglia ressaltou que o documento traz diversos ofícios sem as decisões que o embasam, uma prática que, segundo ele nota, não cumpre com os princípios da legalidade.

Por meio de sua assessoria de imprensa, o STF esclareceu que muitos dos ofícios expostos não estão acompanhados das “decisões fundamentadas que determinaram a retirada de conteúdos ou perfis”. “Todas as decisões tomadas pelo STF são fundamentadas, como prevê a Constituição, e as partes, as pessoas afetadas, têm acesso à fundamentação”, afirmou o tribunal.

Embora boa parte dos documentos expostos no relatório não apresente os motivos para a suspensão de perfis, isso não significa que as ordens não tenham fundamentação jurídica, requisito de toda determinação judicial.

Ainda assim, Marsiglia afirma que é preciso saber se, de fato, o Twitter recebeu as decisões e não as divulgou, se a própria Comissão do Congresso dos EUA não inseriu toda a documentação de que dispunha no relatório.

Caso a plataforma não tenha recebido as decisões, ela ficaria, inclusive, desprovida do direito de defesa, garantido pela Constituição Federal. “Não é possível você enviar só o ofício, você precisa enviar a decisão fundamentada”, já que “tanto as pessoas quanto as plataformas afetadas podem querer recorrer, podem querer enfrentar aquela decisão”, afirma ele.

Afrontas ao devido processo legal e à Constituição

O especialista em liberdade de expressão diz ainda que, caso seja comprovado que não houve o encaminhamento das decisões, preceitos constitucionais como o de ampla defesa podem ter sido desrespeitados.

Em resposta a uma postagem recente do advogado abordando o tema, usuários do X que tiveram seus perfis suspensos pelo TSE se manifestaram, dizendo que nunca receberam qualquer informação que justificasse ou que apontasse a causa dessas medidas. Ao republicar a postagem de Marsiglia, a usuária Paula Marisa comentou que não recebeu decisão fundamentada: "Minhas redes foram derrubadas e eu só soube quando as plataformas enviaram e-mail”.

O antropólogo Flávio Gordon, colunista da Gazeta do Povo e autor do livro “A Corrupção da Inteligência", disse em seu perfil no X que sua situação é idêntica à de Paula Marisa. “Também não recebi nada. E pior: quando meu advogado foi se inteirar do caso, recebeu a resposta de que não existia processo. Mesmo tendo feito protocolo de vistas, não dava para ver sequer a existência do processo”, afirmou.

Mesmo o portal Uol, que teve uma postagem no X retirada do ar por cinco dias pelo TSE em 2022, informou que seu departamento jurídico não havia sido notificado da decisão, segundo informou a Folha, dona do portal. A publicação direciona para uma matéria em que a Folha de São Paulo noticia o vazamento de dados do ministro Alexandre de Moraes em “grupos bolsonaristas”, porém, não cita nenhuma informação pessoal do magistrado.

Na visão de Marsiglia, a não notificação é uma afronta ao direito de defesa. Ele afirma que esse “é um princípio básico de qualquer constituição democrática do mundo" e que "é algo salutar de ser feito, já que eu não posso enfrentar uma decisão se desconhecer seus fundamentos”.

Caso o envio das decisões não tenha realmente ocorrido, o que se configura, na opinião de Marsiglia, é uma espécie de “condenação secreta”, ou seja, a pessoa está obrigada a alguma penalidade sem saber o que fez ou por que a recebeu. E, nesses casos, ainda há o agravante de que tudo o que foi investigado e decidido sobre as partes limitou sua liberdade de expressão, que é outro direito constitucional.

Marsiglia ainda defende que o sigilo, que alguns advogados e juristas alegaram para justificar o não envio das decisões, não diz respeito às partes, mas à exposição pública.

Neste caso, diante da amplitude que o tema alcançou, inclusive na imprensa internacional, ele defende que o STE e STF deveriam abrir completamente todas as decisões, com seus embasamentos, para que se esclarecesse os questionamentos que pairam sobre esse ponto. O Congresso, por sua vez, também poderia solicitar aos tribunais que lhe enviassem as decisões.

Além das já aventadas iniciativas que o Congresso Nacional poderia levar adiante, outra possibilidade de apuração da conduta do TSE e do STF nesses casos é pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Segundo Marsiglia, é atribuição da PGR investigar ou apurar irregularidades eventuais nos procedimentos das Cortes e, por essa razão, o órgão poderia realizar uma apuração institucional a fim de averiguar as irregularidades desses processos. Assim como a Câmara e o Senado, até o momento, a PGR não se pronunciou sobre o assunto.

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