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Lula sem Chávez
Os ex-presidentes Hugo Chávez, da Venezuela, e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil| Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil

Eu estava lá, em Caracas, em dezembro de 2015, quando a oposição deu uma surra histórica no chavismo nas eleições legislativas, conquistando maioria na Assembleia Nacional pela primeira vez desde a ascensão de Hugo Chávez ao poder, em 1999. Lembro de conversar com eleitores dos barrios, as favelas venezuelanas, que me disseram que se sentiram estimulados a irem votar, esperançosos de conseguirem mudar os rumos do país pelas urnas e apesar das manobras de Nicolás Maduro para empastelar o voto, por causa de algo ocorrido a milhares de quilômetros dali: a vitória de Mauricio Macri na Argentina, encerrando vários anos de kirchnerismo. Sim, é espantoso, mas real. A política argentina inspirou os venezuelanos a mandar um duro recado aos herdeiros do desastroso projeto revolucionário de Chávez.

Como bem sabemos, depois disso Maduro deu um golpe na Assembleia legitimamente eleita e consolidou sua ditadura de esquerda na Venezuela. Mas naquele final de 2015 começou a retração da maré vermelha na América Latina, o período de cerca de dez anos durante o qual a esquerda governou de maneira mais ou menos simultânea vários países da região, incluindo Brasil, Venezuela, Argentina, Uruguai, Chile, Bolívia, Peru, Equador e Paraguai.

Há uma nova maré vermelha se formando na América Latina. O kirchnerismo voltou ao poder na Argentina há pouco mais de dois anos graças aos erros cometidos por Macri no manejo da economia. Nos últimos meses, ascenderam ao poder Gabriel Boric, no Chile, e Pedro Castillo, no Peru. E, há uma semana, o ex-guerrilheiro urbano Gustavo Petro foi eleito presidente da Colômbia. Lula, pré-candidato à presidência no Brasil, está exultante. Ele vislumbra uma reedição das parcerias de esquerda que dominaram o segundo mandato da sua primeira passagem pelo Palácio do Planalto.

Não acho apropriado chamar a repetição do fenômeno da prevalência esquerdista na região de "onda rosa", pois não há indícios de que possuam traços menos radicais, estatistas ou autoritários do que na primeira onda. Mas tampouco dá para dizer que vai ser igual, um mero "repeteco".

Para fazer uma boa análise em relações internacionais é preciso deixar as paixões políticas de lado e reconhecer que há muitas variáveis que impactam na configuração do cenário regional.

A afinidade ideológica entre os governos dos países é uma dessas variáveis, sempre citada, mas superestimada, para explicar as escolhas em política externa. Há evidências negligenciadas de que essas relações preferenciais sempre foram pautadas pelo poder da grana, mais precisamente o interesse de grupos privados em expandir suas atividades para países vizinhos, onde podiam atuar em ambientes institucionais flexíveis, isentos de licitações e longe dos olhos dos órgãos de controle brasileiros.

O boom das commodities, agrícolas e petrolíferas, durante a primeira onda vermelha ajudou bastante o projeto de expansionismo diplomático da Venezuela e do Brasil na região. Há quem critique a avaliação de que a ausência dessa conjuntura internacional favorável limitará a capacidade de tocar adiante esses projetos de poder. Esses críticos consideram que não faltarão recursos para isso, pois eles virão, nessa segunda onda, de atividades criminosas, da "economia do ilícito".

Acho que a crítica erra o alvo, porque a principal questão não é se os governos terão recursos para financiar seus projetos de poder, e sim quais objetivos serão perseguidos.

Internamente, o objetivo será aparar as arestas e "melhorar" a estratégia para perpetuar-se no poder, tolhendo a margem de manobra da oposição e evitando os contratempos do passado? Provavelmente.

Externamente, no âmbito da estratégia regional, resta evidente que os novos governos de esquerda vão retomar as relações com a Venezuela e emprestar seu apoio para dar sobrevida ao regime de Maduro. Mas convenhamos, os últimos anos de um contexto em que o ditador venezuelano enfrentou um entorno de governos de direita, hostis a ele e de apoio à oposição liderada por Juán Guaidó, tampouco serviram para trazer a democracia de volta à Venezuela. A perspectiva, se ficasse como estava, era a de permanência de Maduro no poder, com ou sem "nova maré vermelha".

O que mais se pode dizer em relação aos objetivos? Eu diria que o primordial será uma aproximação como a China nunca antes vista. Há diversos fatores para isso, mas me restrinjo a destacar um deles.

Se Lula for eleito, ele encontrará um contexto regional que lhe permitirá buscar um papel de liderança inconteste. Muito diferente daquele que existiu na primeira onda vermelha, quando teve que dividir essa liderança com Chávez.

Tanto Lula quanto Chávez compartilhavam da ideia de que o período de hegemonia solitária dos Estados Unidos havia sido ultrapassado e que era preciso promover uma nova era multipolar, ou seja, em que o poder global se dispersaria em vários polos. Mas as perspectivas de ambos eram diferentes. A política externa de Lula almejava reformar os organismos internacionais para atingir o objetivo de uma nova ordem multipolar, na qual o Brasil teria um papel de destaque como líder de um polo regional ou de nações do hemisfério sul.

Chávez, por sua vez, tinha uma visão revolucionária de seu papel no mundo. Ele não queria reformar, ele queria destruir e colocar outra coisa no lugar. Na prática, isso significa que Chávez cooperava com Lula em muitos aspectos no âmbito internacional, mas também impunha barreiras a diversos pontos da agenda regional do brasileiro. Isso está bem descrito em estudos de José Briceño-Ruiz.

Lula sem Chávez, portanto, teria a chance de buscar a liderança regional sem o contraponto de outro governante com uma visão por vezes conflitante. Mas isso não significa que o resultado seria melhor porque, como já afirmei antes, o contexto internacional mudou. E, ainda mais importante, é o fator imponderável de como vão se configurar os interesses privados e sua interação com agentes públicos na definição e execução de agenda em política externa. Para onde esses interesses vão direcionar o olhar de uma nova gestão petista, caso ela venha a ser confirmada pelas urnas?

Em artigo recente na revista Foreign Policy Analysis, "Myths of Multipolarity: The Sources of Brazil's Foreign Policy Overstretch", Schenoni et al observam que na primeira década deste século a política externa brasileira expandiu-se para além de sua capacidade, embebida que estava pelo mito da multipolaridade — e incentivada por interesses privados. O tal mito, nos últimos anos, foi atropelado pelo fato de que, em vez de uma ordem multipolar, o que está se consolidando nas relações internacionais é uma polarização entre Estados Unidos e China.

Uma nova "onda vermelha" na América Latina, sejam quais forem as ambições de liderança por parte de Lula, seria inevitavelmente pautada pelo esvaziamento do mito da multipolaridade. Um cenário possível é o de que veremos, na política externa dos novos governos da região, uma permeabilidade nunca antes vista aos interesses da China — acentuada justamente pela fragilidade econômica em que seus países se encontram e delimitada por interesses privados nacionais com ambições externas.

Se quisermos entender quais caminhos serão escolhidos pelos governos da nova onda vermelha da América Latina e, especialmente, do Brasil, será preciso tentar antever quais vasos comunicantes se estabelecerão entre grandes grupos empresariais e os novos donos do poder.

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