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Finalmente, o futuro
| Foto: Pixabay

Como tratar de um romance que você acha essencial sem dar spoiler? Esta questão tem me acompanhado, especificamente, no caso de um romance que, suspeito, acertou em grande medida o que será nosso futuro, se a ciência chegar aonde queremos que chegue e realize nossos mais escondidos sonhos utópicos.

Talvez tenha achado a solução. Discutir a utopia realizada no romance – que, devido à alta qualidade do autor, é descrita em poucas páginas da obra, mas de forma definitiva –, avançando suas características e consequências sem entrar no mérito do enredo em si.

Se você reconhecer o romance porque já o leu, tudo bem. Estamos entre iguais. Mas não vá você dar spoiler no Painel do Leitor. Se não reconheceu e se interessar, pergunte ao Google.

Todos imaginamos que processos científicos disruptivos - adoro essa palavra fetiche do mercado de picaretas motivacionais - são levados a cabo por pessoas motivadas em avançar a ciência em favor da humanidade. No caso do romance, o brilhante cientista é um deprimido profundo, sem nenhuma esperança e sem qualquer vida afetiva.

Suspeito que ninguém possa ter capacidades cognitivas superiores sem que elas derivem de sintomas psíquicos graves. O que não significa que todo mundo com problemas mentais tenha tais capacidades, a maioria é só uma vítima de seu quadro clínico.

As pesquisas em biologia molecular do nosso personagem deprimido o levam a descobrir que todos os males humanos - doenças, envelhecimento, morte, desencontros do desejo, instabilidades sexuais, sociais e tristezas decorrentes de tudo isso tudo - são consequências da reprodução cruzada humana e da meiose a ela associada - meiose é o processo de divisão celular das células reprodutivas.

Sem entrar aqui no mérito técnico das diferenças entre mitose e meiose - de novo, o Google explica -, o fato é que a reprodução dos gametas sexuais via meiose gera instabilidade e essa instabilidade, trazida pela diferença envolvida nos gametas masculinos e femininos, causa todos aqueles males descritos acima e que todos conhecemos, segundo estudos de nosso gênio deprimido.

A ficção científica envolvida na trama é a descoberta de que, uma vez que o ser humano reproduza celularmente só via mitose, todas as suas células serão sempre iguais a si mesmas. Portanto, não haverá instabilidades introduzidas pelas diferenças entre os sexos que reproduzem a espécie.

Enfim, a humanidade "evolui" para seres assexuados imortais, todos iguais, nem homens, nem mulheres - logo, os agêneros e assexuados venceram a polêmica idiota dos gêneros - que podem ou não ser gerados em quantidades maiores ou menores pelas farmacêuticas a partir de acordos multilaterais entre os países ricos - os pobres e fundamentalistas, isolados em reservas, ainda permanecerão um tempo reproduzindo via sexo entre homens e mulheres, até a extinção do homo sapiens sexuado e infeliz atual.

O romance é escrito por um desses nossos "descendentes", já da outra espécie, que dedica o livro ao homo sapiens, esse infeliz. A única espécie que chegou à conclusão de que seria melhor extinguir a si mesma para fazer evoluir o mundo.

O mundo agora é feliz. Para além de todas as mentiras comuns em nossa época, a metafísica contemporânea sai do armário nessa obra: o que está em jogo é suprimir a morte material a todo custo, o resto é propaganda enganosa. Não existem mais famílias, a nova espécie não tem sexo nem gênero. Não há desejos, não há dependências afetivas, ninguém envelhece nem adoece, ninguém "quer" nada. O nirvana é de fato aqui e agora. Nem heranças, nem inventários.

Os problemas são outros. Se ninguém morre, como decidir fabricar mais gente? Quem decide? Quem interdita? À medida que a biotecnologia em jogo se torna mais barata, a questão é como controlar a possível "democratização" desse processo e a explosão populacional de imortais sem nenhum desejo. Sem riscos de guerras nem consumo exagerado, o planeta repousa nas mãos de uma nova espécie sem nenhum anseio destrutivo. A depressão como paraíso. Enfim, uma mudança de ares.

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