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Não, não vivemos um pesadelo. Ao menos nós, que ousamos abrir os olhos para testemunhar o milagre de um dia e mais um dia e mais um dia.
Não, não vivemos um pesadelo. Ao menos nós, que ousamos abrir os olhos para testemunhar o milagre de um dia e mais um dia e mais um dia.| Foto: Pixabay

Parece letra de rock brasileiro ruim, mas é a mais pura realidade: todos os dias, ao abrir os jornais e as redes (alerta de rima inevitável) sociais, alguém tenta me convencer de que minha, a sua, a nossa vida é um pesadelo. Não é. Aqui e ali, reconheço que levo uns sustos e, se fecho os olhos para a beleza que me cerca, vivo dias menos do que perfeitos. Mas tenho plena consciência de que meus problemas são consequências das minhas escolhas. Inclusive essa mania de fechar os olhos.

Apesar de Alexandre de Moraes, por exemplo, sou livre. Tanto quanto é possível ser realmente livre hoje em dia. No ensaio “Dentro da Baleia”, aliás, George Orwell faz referência à liberdade vivida por Thoreau e Whitman, uma liberdade extrema que não encontra paralelo nos dias de hoje. Eu bem poderia optar pelo pesadelo nostálgico e ficar reclamando por não poder cometer a estupidez de xingar um membro da Suprema Corte de nazista. Mas, se sou livre, e sou, é justamente porque não meço minha liberdade pelos erros que sou impedido de cometer. Sou livre de uma forma mais profunda - mas este não é um texto religioso.

Sim, é verdade. A liberdade de expressão não é a mesma de antigamente. Não é a ideal. Ou melhor, não é a liberdade que eu considero a ideal. Mas é a que tem para hoje. E é preciso saber dar um nó nas ideias dos tiranetes de toga, da mesma forma que os esquerdistas faziam com os militares. Aquela metáfora esperta, sabe? Aquela ironia tão sutil que vai deixá-lo com a calva salpicada de pulgas.

Mas nem sei por que estou falando disso. O que quero dizer mesmo é que, enquanto sociedade, não vivemos o pesadelo apregoado à direita e à esquerda. Não seremos testemunhas de nenhum apocalipse. E a decadência que sentimos ao nosso redor é uma sensação. Para haver decadência é preciso ter atingido algum tipo de auge, não? O Brasil já foi melhor em alguns aspectos, é bem verdade, mas também já foi pior em muitos outros. Já teve Guimarães Rosa, por exemplo, mas também já teve escravidão. Já teve 200 mil pessoas para ver um Fla x Flu, mas também já teve, sei lá, Serra Pelada. E por aí vai.

A questão é que todos nós nos tornamos especialistas em alguma coisa e tendemos a nos ater a um aspecto específico da sociedade. Não, da vida! Daí somos sugados por um redemoinho de nostalgia e idealização e invariavelmente saímos do outro lado com a constatação fatídica de que tudo está pior. Logo, vivemos um pesadelo. Ou até uma distopia, como exageram alguns.

Talvez eu esteja sob os efeitos de uma aurora auspiciosa, sei lá. Mas a impressão que me dá é a de que não só as pesquisas eleitorais destoam da realidade. Quase todas as manchetes parecem alimentar um pessimismo (às vezes disfarçado de cautela) que é só desespero – no sentido de “falta de esperança”. As ameaças são muitas, reconheço, do ativismo judicial à ideologia de gênero, passando pelo intervencionismo econômico e a bandidolatria, sem falar na meritocracia que é uma palavra totalmente esvaziada. Mas é importante ter em mente que se concentrar nessas ameaças equivale a idolatrar o medo.

Por mais caninos afiados que exibam, essas desgraças todas não são suficientes para ofuscar o brilho discreto, mas consistente, do cotidiano. Só os tolos (entre os quais às vezes me incluo) deixam que as palavras assustadoras de um Lula, de um José Dirceu ou de um Luís Roberto Barroso silenciem o obrigado de um amigo, o muito-bem de um chefe, o ‘tarde de um desconhecido, o eu-te-amo da esposa.

E só os mais tolos ainda, aqueles que querem consertar o mundo, é que se atêm à miséria (em vários sentidos) que o cerca, em vez de agradecer pela abundância (em vários sentidos) que também o cerca. Não, não vivemos um pesadelo. Ao menos nós, que ousamos abrir os olhos para testemunhar o milagre de um dia e mais um dia e mais um dia.

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