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Imagem ilustrativa.| Foto: Unsplash

Todos os brinquedos estão espalhados pelo chão da sala, as peças do jogo fora da caixa, dispersas em cima do sofá; um copo de água entornou na mesa e quase molhou o livro ilustrado, que ficou aberto ali próximo, já acidentalmente pisado.“Não morde seu irmão! Ai, vai riscar a parede...”.

Esse é o cenário em que o pai cansado encontra, após a jornada, a mãe irritada – ele mal sabe o que ela já viveu. Aflitos diante da cena, os dois se desentendem e gritam na frente dos filhos, que, incentivados pelo exemplo, gritam junto. “O papai já falou duzentas vezes que não é assim!”. O concerto de todos os barulhos — que está mais para desconcerto — perturba o discernimento e, numa verdadeira guerra de trincheira, vai-se conquistando cada etapa a muito custo, de tal modo que, após a última colherada, os pijamas vestidos, os dentes escovados, os bichos de pelúcias arrumados do jeito certo e cantada a música, venha, enfim, a paz.

Para muitos pais, esse esperado silêncio parece ser o único momento de trégua do dia, e isso pode ser sinônimo de uma grande decepção, se contrastado com nossos sonhos e expectativas — de ser bons pais, de construir um lar harmonioso, e de transmitir a nossos filhos aqueles que julgamos serem os valores mais elevados; enfim, de amá-los e educá-los como havíamos imaginado.

E, no entanto, “parece que eles não me respeitam, não fazem nada do que eu digo, eles não... obedecem”. O problema da obediência está certamente presente, de algum modo, em todas as famílias hoje, e muitas vezes como causa de angústia, desgaste e sofrimento, tanto da parte dos pais como da parte das crianças.

Um lar consistente e filhos que consigam, por si mesmos, sustentar hábitos virtuosos não é apenas uma grande graça ou sorte, mas resultado também de uma paciente construção,

Ao contrário do que muita gente pensa, a dificuldade não precisa aumentar conforme venham mais filhos. A quantidade de trabalho cresce, é verdade; mas também é verdade que cada filho que vem traz consigo, para nós pais, novos entendimentos, fornece ferramentas novas para lidar com as situações humanas e despertam em nós capacidades que ampliam nosso repertório de ação.

Digo isso porque já faz doze anos que sou mãe, e pude ir atestando, com meus sete filhos, o que realmente funciona, isto é, o que realmente educa, ajuda, esclarece e traz alegria. Tem alguns anos que todo o meu trabalho se resume a transmitir esse conhecimento adquirido a outros pais, adiantar para eles essas descobertas para que possam desfrutar logo dessa experiência — antes de doze anos e sete filhos. Isso porque, infelizmente, os nossos pais não nos legaram muita coisa nesse sentido, como poderíamos esperar, especialmente porque a sua geração foi a que sofreu de maneira mais incisiva os golpes contra a permanência da família, e a que foi mais desestabilizada pelas mudanças culturais.

Bem, um lar consistente e filhos que consigam, por si mesmos, sustentar hábitos virtuosos não é apenas uma grande graça ou sorte, mas resultado também de uma paciente construção, à base de dedicação e estudo. E, para isso, é preciso ter muito claro um referencial, um modelo ou ideal de educação (e, em última instância, de ser humano) que sirva como unidade de medida para as nossas ações mais pequenas e cotidianas. Desse modo, sabendo de fato o que queremos para os nossos filhos, cada um dos obstáculos pode se transformar em apoio, em algo que acaba nos ajudando em vez de atrapalhar.

É muito fácil errar quando se trata da questão da obediência. Eu não conheço nenhum pai ou mãe que não deseje que seu filho seja uma pessoa livre, consciente de suas decisões, autônomo, e, mais ainda, alguém criativo, de personalidade forte, que tenha algo de genuíno a oferecer em vez de se curvar ao que vem do mundo.

Da mesma maneira, não conheço um único pai ou mãe que queira que o seu filho seja um submisso, que não questione nada, um escravo que obedeça irrefletidamente a qualquer ordem; e nem que todos os filhos sejam iguaizinhos, fazendo a mesma coisa como soldados num quartel, pois cada criança é diferente e é bom que sua individualidade seja respeitada. Então, como compreender a questão da obediência, e como não trair nossos valores na hora h, no calor do momento em que as crianças estão se recusando a fazer ou a parar de fazer alguma coisa? Na hora da birra?

Parece-me que esse dilema aparente, entre a submissão e a liberdade, advenha de uma compreensão deficiente da própria natureza da criança, e da natureza humana, em última análise. Em primeiro lugar, educar uma criança não é, e nem pode ser, adestrar um animal, simplesmente porque não somos apenas animais, e ignorar as nossas faculdades superiores e a nossa própria natureza espiritual não faz com que elas deixem de existir.

Uma educação que se restringisse à “liberdade”, a deixar brotar o que quer venha da criança, dificilmente poderia ser chamada de educação,

Mais cedo ou mais tarde, uma educação de tipo “adestramento”, baseada no medo, vai mostrar sua insuficiência, e a submissão irrestrita pode se tornar rebeldia contra os pais. Não é salutar desconfiar excessivamente do filho, como se tudo o que viesse dele fosse torto, e como se fosse preciso sempre evitar que ele aja por conta própria. Ao mesmo tempo, uma educação que se restringisse à “liberdade”, a deixar brotar o que quer venha da criança, dificilmente poderia ser chamada de educação, e estaria mais para um abandono, como se não precisássemos aprender nada, e como se não houvesse nenhum esforço envolvido nisso.

É muito importante lembrar do seguinte: as crianças, assim como todos nós, se desenvolvem no tempo. Se seria absurdo exigir que alguém pegasse um instrumento musical pela primeira vez e saísse tocando, mais absurdo ainda seria exigir que meu bebê de dois meses saísse andando, pois as possibilidades humanas — tanto as físicas como as cognitivas, a sensibilidade, a afetividade, a inteligência, a razão — vão se abrindo a nós progressivamente.

Pelo mesmo motivo, não faz sentido exigir que uma criança pequena tome mais decisões do que lhe cabe. Como ela ainda não tem condições de realmente avaliar o contexto, as suas próprias necessidades, o peso relativo e a gravidade de cada coisa, enfim, tendo como “área conhecida” do mundo um círculo extremamente restrito, ter de tomar as próprias decisões é para a criança um fator de ansiedade e de tensão, como seria para nós sobreviver na selva. É nesse contexto que devemos compreender a verdadeira obediência, que é, ao mesmo tempo, submissão e liberdade.

Obedecer é aceitar e realizar com prontidão e interesse as decisões colocadas por um outro, por alguém que tem autoridade sobre nós. Respeitando a natureza e as suas etapas sucessivas, o ato de obedecer se integra na educação do filho como um passo na construção de um hábito, que, no seu tempo, tornará possível para ele, como adulto, agir de maneira virtuosa. A construção desse hábito é o tesouro que nós legamos em herança a ele, do qual ele vai dispor livremente quando crescer. Mas, para dispor dele livremente, é preciso primeiro que ele exista, e para que ele se forme é preciso se submeter à autoridade, isto é, obedecer aos pais.

Somos muitas vezes escravos das nossas paixões e, abatidos pelo cansaço e outras dificuldades, agimos como sonâmbulos.

A obediência não é algo estranho à criança; ao contrário, é a expressão espontânea da confiança inata que ela tem nos pais. Reparem que para as crianças os pais são capazes de tudo e podem tudo, terão respostas para todas as suas perguntas, saberão o que fazer quando elas são souberem, e para quem inclusive elas podem pedir qualquer coisa (uma vez, um dos nossos filhos nos pediu a Lua). É essa confiança inata que gera, ou que praticamente se identifica com a nossa autoridade. Sem pensar, a criança sente que “Eu posso não saber o que fazer, mas eles me ajudarão”. E, portanto, obedecer aos nossos comandos e ordens é para ela uma alegria, é dar o passo certo indicado por aqueles que a guiam.

Ocorre, porém que, num dado momento de seu desenvolvimento — e por motivos que não poderemos destrinchar aqui —, a criança começa a questionar essa autoridade, e a testar o seu poder oferecendo resistência aos comandos. E creio que seja nesse ponto que muitos pais, não por maldade, obviamente, mas por falta de clareza, comecem a tomar atitudes que quebram a confiança dos filhos. Assim, enfraquecem a sua autoridade, quando poderiam, ao contrário, agir de modo a alimentar essa confiança, e a se mostrar como o porto seguro para a qual eles podem em qualquer momento de perigo retornar.

Isso acontece porque nós também somos muitas vezes escravos das nossas paixões e, abatidos pelo cansaço e outras dificuldades, agimos como sonâmbulos, desperdiçando momentos de ouro do dia-a-dia em que poderíamos, de fato, realizar aquilo que imaginamos e viver de verdade os nossos valores. Por isso, pode ser útil trazer conosco algumas chaves, como se fossem umas joias guardadas numa caixinha, nas quais possamos nos concentrar e meditar nos momentos de calma e lucidez, mas sobretudo para nos servirem de auxílio, para que sejam luzes de “acesso rápido” no calor do momento, uma bússola. Gostaria de listar aqui algumas dessas chaves relacionadas à obediência, tanto do que creio que os pais devam evitar como do que podem buscar fazer.

1) Em primeiro lugar, não reclamar. Sob essa máxima incluo as vezes em que bufamos de desapontamento, dizendo que não acreditamos que “você fez isso de novo!” e “eu já falei mil vezes que...”, em que exclamamos que estamos cansados, sobrecarregados, ou que tínhamos mil outros planos para aquele tempo. Não devemos murmurar, nem ralhar assim com as crianças, ou tentar comovê-las para que tenham compaixão de nós. Usar quaisquer sentimentos negativos para motivar a obediência não é uma boa ideia. Também não devemos fazer perguntas que, para a criança, são completamente absurdas (do tipo “o que você acha que vai ser quando crescer se não fizer o dever de casa?”, ou “você sabia que muitas crianças não têm o que comer?”), e nem exigir delas que nos deem o porquê de suas atitudes (de seu choro, de sua irritação etc.), ou pedir explicações. Nada disso é efetivo, porque a criança não é capaz de nos acompanhar nessas elucubrações, mas sobretudo porque, demonstrando estarmos perdidos, inseguros e sem controle, não inspiramos confiança e, não inspirando confiança, enfraquecemos a nossa autoridade.

2) Em segundo lugar, não pedir que escolham quando não é necessário. Para evitar ansiedade, o melhor é buscar o contrário: reduzir as possibilidades de ação a cada momento, canalizar a energia oferecendo a elas uma rotina, ou, em outras palavras, dar-lhes pronta uma “interpretação” da realidade do tempo disponível.

3) Depois, não dar explicações demais sobre as nossas ordens. Simplesmente porque as crianças não são capazes de compreendê-las da maneira que gostaríamos, e vão absorver apenas a realidade sensorial imediata do “sermão” — que, sendo muito enfadonha e desagradável, vai afastá-las de nós, como uma figura nervosa que repete enfaticamente “blábláblá...”. É proveitoso, sim, apontar as causas das coisas, mas com explicações simples proporcionadas à capacidade da criança, mas jamais como algo associado ao momento da ordem (a ordem, veremos em seguida, deve ser objetiva e direta).

4) Não apelar para palmadas e gritos, por motivo semelhante ao anterior. A resistência imediata que se gera ao doloroso e ao desagradável bloqueia a capacidade de escuta e o diálogo efetivo. E, além disso, porque a “pedagogia do medo”, que está mais para adestramento, tem prazo de validade muito curto: quando a ameaça é suprimida, não resta nenhum bom motivo para fazer ou não fazer a tal coisa.E é provável que nada sólido permaneça disso também quando elas forem adultas.

5) Enfim, não reduzir as dores e sofrimentos delas. Não demonstrar compreensão e compaixão pelas suas pequenas batalhas interiores é um grande fator de distanciamento dos pequeninos para conosco, e, assim, de perda de confiança e de autoridade. Por que obedecer a alguém que mal sabe o que se passa comigo, ou que não leva a sério o que eu digo?

Não devemos murmurar, nem ralhar assim com as crianças, ou tentar comovê-las para que tenham compaixão de nós.

E, agora, para cada uma das coisas que citei que devemos deixar de fazer ou evitar, acrescento duas que devemos buscar, de maneira bem prática e objetiva:

1) Definir o que se deseja como rotina. Se a maneira como as coisas vão funcionar não estiver clara nem para você, ao menos como um projeto, é provável que os filhos, mais cedo ou mais tarde, também vão ter dificuldade em lhe obedecer.

2) Dar as ordens de maneira clara e firme, mas pacífica, isto é, sem a companhia de ameaças. Um único comando que seja simples e direto, e não um item numa enxurrada de obrigações despejada sobre a cabecinha deles. Assim será possível à criança realmente entender o que você espera dela.

3) Garantir que a ordem foi ouvida e compreendida. Não grite da cozinha para o banheiro, com a esperança de que dê certo. Tenha certeza de que a comunicação está sendo efetiva.

4) Ter gatilhos para a execução. Associe a nova tarefa ao contexto da rotina (após o banho, ou antes de escovar os dentes), e repasse com o filho a ordem das coisas, para que ele mesmo diga em voz alta a nova ordem incluindo o novo dever.

5) Faça-os executar a ordem, ainda que seja preciso, num primeiro momento, acompanhar, ajudar, fazer junto. E para isso ela deve ter sido precisa, para que a execução não se dilua na generalidade: “Arrumar o quarto” é algo muito difícil, mas guardar o brinquedo tal no balde vermelho é específico o suficiente.

6) Compreender as situações atípicas, para não dar ordens impossíveis: visitas, novidades, festas, cansaço além do normal ou outras coisas que sejam estranhas à rotina da criança são motivo suficiente para que as tarefas não lhe sejam dadas como nos dias normais. Pondere, e espere o melhor momento de retomar aquele dever.

7) Reforçar as coisas boas feitas espontaneamente. Dizer ou pensar que a criança “não fez mais do que a obrigação” é um pouco injusto considerando o esforço, às vezes vão, que fazemos para cumprir as nossas próprias obrigações adultas. Cumprir a obrigação tem, sim, o seu mérito, e reconhecer um esforço despendido é gratificante e fortalece a confiança.

8) Preferir castigos que sejam consequências da desobediência, dentro do contexto e da lógica da rotina da casa que já está estabelecida, e não punições aleatórias. O melhor, com certeza, é nunca precisar chegar ao ponto de castigar; mas, se acontecer, que seja algo cuja coerência a própria criança possa constatar.

9) Não desanimar perante a necessidade de repetir a ordem — muitas, várias, inúmeras, incansáveis vezes. Nosso trabalho como educadores se assemelha à formação de um sulco na terra, o que não se faz de um golpe só.

10) Não ceder quanto a ordens dadas, como quem “finge que não viu”, seja por conveniência, cansaço ou vergonha de uma visita. Isso transmite ao filho a mensagem, muito simples, de que “é aceitável, às vezes, agir contra a própria consciência”. Esse tipo de atitude contribui para insensibilizar a consciência moral da criança, que é exatamente o oposto de tudo o que desejamos com quaisquer ordens que venhamos a dar.

Podemos nos tornar, para os nossos pequenos, que vão crescer, um porto seguro para o qual eles podem e sabem que podem, a qualquer momento, regressar

Espero que esses conselhos, cuja eficácia eu pude provar em minha família ao longo da última década, sejam úteis para você e, como pontos fixos nos quais se apoiar nos momentos agitados do dia-a-dia, ajudem-no a pôr em prática, progressivamente, a educação e os valores que você concebe e deseja para seus filhos nos momentos de maior tranqüilidade.

Eles vão contribuir para que seus filhos o obedeçam, não porque têm medo ou porque são submissos a qualquer comando,mas porque confiam em você como alguém que verdadeiramente lhes quer o bem, e, ao buscarem o bem, eles buscarão você. Isso é educar para a liberdade, mas a verdadeira, e não a falsa, que não passa de escravidão dos desejos.

Dessa forma, podemos nos tornar, para os nossos pequenos, que vão crescer, um porto seguro para o qual eles podem e sabem que podem, a qualquer momento, regressar. E mais que isso: seremos para eles uma referência, um símbolo daquilo que é maior do que nós, e ao que nós também obedecemos; o que nos orienta e guia, quem nos inspira, quem é a essência de nosso amor por eles e que, afinal, confiou aos nossos débeis cuidados essas joias imortais.

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