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Bolsonaro só existe porque nosso país deixa as pessoas desesperadas
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Quando você se depara com algo que considera bizarro, há pelo menos dois caminhos a seguir. Um é chiar, dizer que o mundo virou de cabeça para baixo e se enfiar debaixo das cobertas. O outro é tentar entender – até para tentar resolver o problema, se for o caso.

Jair Bolsonaro é um problema para o Brasil. Seria pavoroso ver um sujeito antidemocrático, violento, radical subir ao principal cargo da República.

Para que fique claro: trata-se de um homem que não só apoiou a ditadura militar como acha (e diz em público) que ela foi muito branda. Que precisava pegar mais pesado.

Em entrevista, Bolsonaro já disse que, se fosse presidente (pode se persignar, não custa), fecharia imediatamente o Congresso. E mataria pelo menos uns trinta mil (muito mais do que os militares mataram em 21 anos).

Você poderia imaginar: mas é um gestor. Nada. Em umas poucas entrevistas de pré-campanha já deu para ver que o sujeito não sabe de nada. Só fala de milicos, moral e nióbio.

Chega a dar pena: o sujeito tem seis mandatos como congressista e não sabe o que é o tripé macroeconômico do país. É até difícil entender como alguém pode passar 24 anos no plenário sem se dar conta de como isso funciona. Exige esforço e dedicação.

É claro que a explicação está em outro canto. Da minha parte, eu acho que a explicação é a seguinte: o povo está achando, com certa razão, que nossa democracia é uma bagunça.

As provas do caos

Começando por um desvio.

O maior esforço jonralístico de que eu já participei foi uma série de reportagens sobre homicídios. Quatro repórteres, equipe de vídeo, ilustradores, um ano e meio de pesquisa. Ficou lindo.

No nosso mundinho, fomos compreendidos. Ganhamos prêmios e tapinhas nas costas, tenho até hoje diploma pendurado na parede de casa.

Mas teve uma coisa: ninguém deu a mínima.

Você acha que quem foi assalto vai à delegacia? Você já viu alguém recuperar a carteira e o celular numa delegacia? Você já viu alguém acreditar que a polícia vai recuperar isso? No Brasil?

Veja bem, os dados que as matérias revelaram eram absolutamente assustadores. Mostravam, só para ficar em ume exemplo, que apenas 4% dos homicidas em Curitiba eram julgados, e que era mais comum um assassino ser morto a tiros na rua do que ir a julgamento.

Para mim, é uma prova de um Estado falido. Ninguém se importou. Por quê? Primeiro, porque todo mundo sabe que nosso Estado é falido. Segundo, porque os mortos eram normalmente dependentes químicos da periferia que tinham, eles próprios, envolvimento com crime.

Já enquanto preparávamos o material, os comentários de quem via os inquéritos era assustador. Um rapaz do xerox, fazendo uma cópia de investigação, via as fotos dos mortos e perguntou o que eu estava fazendo. Expliquei, e disse que normalmente eram crimes em série, em que o assassino também morria.

“É bom que vai dando uma limpada nos bairros”, disse ele.

A coisa no Estado brasileiro é tão feia que a gente passa a aceitar soluções alternativas, que deveriam ser inaceitáveis. Desde que “dê uma limpada” no país, qualquer coisa está valendo.

Como vivemos

Não me entenda mal. Eu sou um fã incondicional da democracia. acho qualquer democracia (qualquer) melhor do que qualquer ditadura. Sem exceções.

Mas a nossa democracia, convenhamos, é uma bagunça.

E não estou falando aqui nem de problemas eleitorais, nem do funcionamento do processo político em si. Estou falando do que interessa à maioria dos cidadãos: estou falando dos serviços que o Estado presta, ou deveria prestar.

No nosso país, o sujeito começa a vida sem ter creche para frequentar; vai depois para uma escola pública mal avaliada; se fica doente, passa horas na fila do hospital; quando (e se) consegue emprego, recebe o primeiro salário e é assaltado a caminho de casa, ao descer do ônibus superlotado.

Você acha que ele vai à delegacia? Você já viu alguém recuperar a carteira e o celular numa delegacia? Você já viu alguém acreditar que a polícia vai recuperar isso? No Brasil?

Se no caso de assassinatos só 4% vão a júri, imagine o que acontece com quem rouba carteira?

Uma bagunça

Certa vez vi uma declaração de uma mulher, acho que na tevê. Ela dizia que não ia se importar de ser pobre, desde que as coisas de pobre no Brasil não fossem tão bagunçadas.

Essa é a palavra: bagunçadas. As coisas no Brasil são bagunçadas.

Entra governo de direita, depois outro de esquerda, cresce o PIB, derrubam a inflação, mas os serviços continuam uma droga. E não é à toa que a população passa a imaginar que essa tal democracia não resolve coisa alguma.

Aí vem a nostalgia do que tinha aparência de funcional.

Claro: a ditadura brasileira foi um horror em todos os sentidos, inclusive no econômico. Bolsonaro levou uma invertida engraçadíssima da jornalista Mariana Godoy ao elogiar o desempenho da economia no tempo dos militares.

Mariana Godoy: “Oi?!”

A hiperinflação era só um dos problemas. E nem era o mais grave.

Mas na ditadura não se publicavam notícias sobre muitas coisas, e as pessoas tinham a impressão de que estavam protegidas por aqueles sujeitos de farda e armados até os dentes, que falavam em moral e bons costumes.

Roubou-se tanto quanto. Matou-se muito. Mas falava-se tanto no Brasil que dá certo (e censurava-se tanto qualquer crítica), que as coisas pareciam bem.

Pelo menos, se não funcionava, havia uma impressão. E já era algo.

Que saudades dos comunistas

A ditadura também trazia um inimigo claro. Moscou, lá longe. Cuba, mais perto. E os esquerdistas em geral, que podiam estar na esquina da sua casa.

Nada como um bom inimigo para fazer as pessoas se sentirem bem. Sabem que basta combater aquilo e, olha só, tudo estará resolvido.

Os comunas eram o bode na sala. Era importante mantê-los na sala, cheirando mal e chifrando todo mundo. Sem eles, como justificar o aparelho repressor? Como justificar a ausência de liberdades, de eleição?

O país está ávido por um bom inimigo. Parece que encontrou um em Lula. Agora, precisa de um anti-Lula. Alguém que pareça fazer o discurso oposto, em tudo, que represente o outro lado da moeda.

Se Lula foi contra a ditadura, tragam alguém que foi a favor.

Se Lula era o sujeito da esquerda, tragam alguém da direita.

Se Lula critica o liberalismo, deem-nos um liberal na economia.

Se Lula e o PT defendem uma liberação nos costumes, nos tragam um conservador dos quatro costados.

Alguém bem grande e forte, armado e com um bom inimigo, alguém que faça pose de durão, de herói, que aceite fazer o papel de antipoliticamente correto e dizer que agora é pau e cacete nesses comunas de novo. Em nome da pátria e do pendão auriverde.

Eram os serviços, estúpido

Todo mundo diz que quando o povo foi às ruas em 2013 ninguém sabia o que aquele povaréu queria. Verdade, cada um pedia uma coisa. Tinha gente contra o aborto marchando ombro a ombro com as feministas; liberais gritando em uníssono com gente do PSTU.

Uma confusão. Tamanha que o único grito que unificava o pessoal todo era “Vem pra rua”. Isso sabia-se que queriam. Pôr o povo na rua, mas para quê?

Pensando bem e puxando pela memória, porém, você há de lembrar que, como eram tempos de Copa do Mundo, muita gente falava em “padrão Fifa”. Mais especificamente, serviços padrão Fifa. Educação padrão Fifa. Saúde padrão Fifa etc.

Estavam falando em serviços. Estavam falando em ser bem atendidos quando chegarem ao posto de saúde. Em conseguir colocar o filho na creche. Em poder sentar no ônibus.

Alguma coisa melhorou desde lá? A queda de Dilma, nesse sentido, fez nada. E nem teria como fazer.

O eleitor estava literalmente gritando para expressar o óbvio: que o que lhe interessa é ter uma vida um pouquinho melhor. Que lhe facilitem as coisas. Seja como for.

Na porrada

O Congresso, os governos, todos decidiram ignorar a parte do “seja como for”. Agora está aí, batendo à porta uma eleição que pode acabar com nossa democracia.

Em vez de ir pra rua, agora o povo vai pra urna. E vai saber o que vai dar.

O melhor remédio seria tentar entender tudo isso. Mas muita gente entrou na síndrome de Gilberto Carvalho, que ao ver as multidões de 2013 reagiu sentindo dó de si mesmo.

“Fizemos tanto por essa gente”, disse o ex-ministro. “E agora eles fazem isso.”

Fizeram mesmo? Pois é. Parece que a população acha que não. E agora está atrás de um “mito” que resolva as coisas na porrada.

Nossa democracia, lamento informar, está fazendo água. E os idiotas estão nadando de braçada.

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