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Foto: Aniele Nascimento
Foto: Aniele Nascimento| Foto:

Foto: Aniele Nascimento

Foto: Aniele Nascimento

Lembra que escrevi uma carta dizendo que queria voltar para o Barigui?

Agora, depois dessa espera interminável, eu voltei. Meu retorno era o desejo de muita gente. É claro que algumas pessoas estão morrendo de medo de mim. A essas eu digo para não se preocuparem. É só não me provocar, e tudo bem. Prefiro tomar banho de sol do que agredir gente.

Há um frisson na cidade, permeado de temor, com a notícia da minha volta. Pudera. As especulações correm soltas, os fuxicos, burburinhos por toda parte. Os veterinários se apressaram em dizer que eu sou outro, que não sou o Jacaré do Barigui. Tudo lorota. Eu sou eu mesmo. Ancestral do pântano. Os jacarés todos são os mesmos, somos únicos, nascemos uns dos outros.

Eu me senti injustiçado com o que fizeram comigo. Espero, com toda sinceridade, que não me leve mais embora. Aqui é onde eu presenciei algumas das cenas mais interessantes da vida desses animais chamados humanos.

De regresso à minha casa, eu voltei a testemunhar detalhes inesquecíveis da história da cidade. Juras de amor de jovens enamorados em tardes de verão, brigas e ataques de ciúmes entre casais, cenas de traição das quais jamais a pessoa traída ficará sabendo, beijos apaixonados ao pôr do sol.

Pra quem não sabe, cheguei aqui bem antes das eleições. E eles, os políticos, voltaram em suas caminhadas matinais ou ao entardecer. Jurei segredo e vou cumprir. Não revelarei nomes nem o que ouvi, as tramas eleitorais, as maracutaias, os acertos de propina, caixa 2, promessas de cargos, nomeações.

No meu silêncio de jacaré, respeitarei e muito menos farei alarde dos dramas pessoais e familiares: do pai que, enquanto caminha pelo parque, reclama ao amigo do filho que caiu no mundo das drogas, da mãe desesperada pelas atitudes da filha adolescente – que deu para sair na noite sem hora para voltar –, do casamento que não deu em nada depois de três filhos já nascidos, do sonho que virou em nada, dos fracassos e do sucesso.

Na carta de 2008, quando me levaram embora, eu disse que o que mais me deixava triste era a acusação de que sou violento. Tudo porque matei um cachorrinho. Repito aqui, foi um acidente: alguns visitantes agitaram o cão e eu, para me defender, acabei tomando uma atitude extrema. Mas muitas pessoas são prova de que todos os dias um cão ou outro vinha me observar e eu nunca reagi. Até guardo comigo a lembrança de uma cadelinha maltês, toda branquinha, que, num domingo, veio cheirar minha cauda. A dona da cadelinha, uma menininha de uns 8 anos, tentou se aproximar e a mãe dela, desesperada, gritava para a menina voltar. Ainda bem que a cadelinha satisfez sua curiosidade e logo foi embora.

Você pode pensar que no zoológico é melhor para mim, que lá é mais selvagem. Puro engano. Eu sou bicho urbano. O parque sem a minha presença fica mais triste, com menos vida. Gente é bicho também. E bicho também é gente.

Jacaré do Barigui
Curitiba, novembro de 2014

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