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Autismo - Imagem fornecida por Google Imagens sem restrição de uso.
Autismo - Imagem fornecida por Google Imagens sem restrição de uso.| Foto:
Teu olhar por Suzana Piazza

Susana Piazza

O carro está andando rumo à nossa casa, o sinal fecha e chamo seu nome para aproveitar a demora no trajeto para fazermos alguma brincadeira. Cantar uma música, quem sabe? Sem sua resposta, chamo-lhe novamente. Procuro seus olhos e eles estão perdidos em algum lugar de seu horizonte particular. Procuro seu olhar em um além aparentemente intangível.

Minha respiração para e fico sem ação por um instante. Toco-lhe a mão, repito seu nome. Toco-lhe o rosto com doçura, repito seu nome. Peço que olhe em meus olhos, com tamanha gentileza na voz que nem eu mesma sabia que tinha.

Sinto um aperto que me esmaga o peito, uma solidão avassaladora. Sua ausência presente me imerge numa inexistência de mim mesma. Neste momento, percebo que embora exista mais em mim do que a maternidade, em algum instante da minha vida o fato de ser mãe se tornou a razão e o foco do meu existir, e quando você não está nesse mundo, eu não estou também.

Quando você se ausenta para seu mundo inventado, eu também sumo desse presente existente, porém sem ter um refúgio certo, apenas procurando em qual universo estaria seu olhar. Afago os seus cabelos, tentando compreender como você está ali sem estar.

Percorro o carro com meus olhos, como quem procura uma solução mágica escondida em algum cantinho, me deparando com a folha em que juntas escrevemos números, que em geral crianças da sua idade ainda não sabem. Mas você sabe! Em português e em inglês! Sob a folha de nosso desenho está o jogo da memória, no qual você me vence sempre. Mais à direita o seu cobertor, o cheirinho que você vive passando no seu nariz para dormir ou no meu para me fazer dormir.

Sinais de tua inteligência por todos os cantos do veículo, seu cheiro doce de quem come mais bala do que deveria exalando pelo carro, seus gestos de ternura pulsantes em minha memória… Porém, você está ali sem estar. E nessas horas eu só queria saber para onde você vai, onde mora o seu além.

A maioria das pessoas não percebe seus momentos de ausência. A maioria das pessoas não percebe que me ausento com você. Sua viagem em pensamento para um universo próprio e minha jornada à sua procura em geral levam segundos, ou poucos minutos, num relógio terráqueo, tão diferente do tempo cronológico tão próprio que se faz para mim quando a vida gira em torno de você.

Aos poucos seus olhos têm se perdido menos e cada dia mais responde ao meu chamado, embora haja dias em que você pareça mais distante. É uma vitória! Todavia não posso reclamar de todo de suas ausências, pois nelas aprendi mais do que qualquer lição que tive calcada na presença.

Passei a vida inteira procurando a mim mesma, quem eu era e onde era capaz de chegar. Contudo, numa ironia do destino, apenas quando eu parei de me procurar e passei a procurar seu olhar que eu finalmente esbarrei em mim mesma, me descobri, me conheci, me encontrei. Foi na ausência de seu olhar que aprendi a me admirar e me perdoar. Foi na doçura que direcionei a você que passei a ser mais doce comigo mesma.

Procurando você dentro de você mesma acabei me encontrando dentro de você e dentro de mim. Eu estava ali o tempo todo, mas apenas pude me ver quando procurava ver seus olhos. Tornei-me mais humana, mais forte, mais sensível. Percebi a força o meu amor, que é infinito.

Chamei você novamente e você, desta vez, me retornou o olhar e disse “qué picolé”. O sinal abriu, o carro andou. Agora eu não estava indo mais em direção de casa e sim à sorveteria. A vida é assim, o sinal fecha, o sinal abre, o carro anda, o destino muda, mas você é sempre meu ponto de partida e meu ponto de chegada. Eu te amo!

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