• Carregando...
O não e o Autista
| Foto:

Entre mães de autistas, o “dizer não” às crianças é um assunto recorrente e que gera bastante polêmica. Se você tem um filho autista, provavelmente sabe das dificuldades que envolvem o tema, afinal, dizer “não” para anjos azuis não é exatamente uma tarefa fácil. Crianças em geral não aceitam muito bem o “não”, não é?! Mas em se tratando de crianças e adolescentes enquadrados no espectro autista… “Vixe”! Haja fôlego.

Logo na época em que descobri o autismo de minha pequena, o “como agir diante do não” era uma das questões que mais me tirava o sono. Muitas vezes quando eu dizia “não” a ela, sua reação era bastante intensa: chorava, berrava e se jogava no chão. Embora descrevendo pareça simplesmente uma expressão de uma criança mimada, na verdade era muito além de uma birra normal, era um verdadeiro descontrole que me deixava de coração na mão e sem saber o que fazer. Eu estava preparada para rabugices de minhas filhas, mas para isso?!

No período entre a descoberta do diagnóstico e o início do tratamento, comecei a pesquisar com outras mães como elas agiam, e comecei a perceber que a maioria das mães estava no mesmo barco que eu: dando seu melhor, mas sem saber exatamente como agir. Havia mães que diziam que nunca diziam “não”, pois o autista não aceitava bem a negativa; outras diziam que negavam as coisas, mas evitavam a palavra não, do contrário o desespero da criança era certo; outras por sua vez diziam que falavam “não” o tempo todo para a criança se acostumar.

Após a Gabi começar o tratamento, fui orientada pelos profissionais que a atendem sobre como lidar diante das situações do “não”, e percebi que cada uma daquelas mães com quem falei estavam um pouco certas. Como isso é possível? Simples: mesmo sem saber o que fazer, elas davam o seu melhor para tentar arranjar uma solução e isso é amor, entrega e respeito com os pequenos – e esses fatores já são metade do caminho.

As mães que afirmavam nunca dizer “não” para seus pequenos porque eles não aceitavam bem a negativa, realmente estavam certas no fato de que autistas não recebem bem a negação. Todavia, será que isso é motivo para não negar nada a seu pequeno? Toda mãe deseja preparar seu filho para o futuro, para que ele seja o mais feliz e independente possível. Só que o mundo irá negar coisas a seus filhos, e eles devem saber lidar com esse lado ruim da vida. Se seu filho se descontrola, se joga no chão e grita em sua frente você lidará com a situação com amor, pois afinal ele é sua vida. Mas será que o resto do mundo o tratará assim no futuro? Infelizmente tenho certeza que não, e por isso ele precisa estar preparado. Assim, não acho que não negar nada seja a saída.

E quanto a substituir a palavra “não” por outro tipo de negativa? Isso funciona? Para ser sincera, sim. Há uma verdadeira redução nas “birras” quando você substitui a palavra “não” por outros tipos de negativa ou a evita. Só que o seu pequeno irá receber negativas em forma de “não”. Quantas vezes você já escutou “não” nos últimos anos? Infelizmente seu filho também escutará. Ou seja, eu também não acho que evitar a palavra “não” seja o melhor caminho.

Mas se não podemos protegê-los do grande sofrimento do “não”, como dizê-lo sem causar sofrimento à criança? Acho que o primeiro ponto para encontrar uma alternativa é refletirmos, tentando enxergar a partir dos olhos da criança. Autistas são muitos espertos, sabia? Imagine por um momento se você pudesse conseguir tudo que deseja gritando, se pudesse evitar todos os “nãos” que a vida te deu chorando e se jogando no chão. Eu não sei você, mas, particularmente, eu gritaria muito e choraria muito até todos os “nãos” sumirem. Crianças e crianças autistas não são diferentes.

Sob esse aspecto, dizer “não” parece se tornar tarefa fácil, mas não é. Isso porque uma criança típica parece não gostar do “não”, enquanto a criança autista, comumente, parece sofrer muito (muito mesmo) com o “não”, e ninguém quer fazer seu filho sofrer a esse ponto. É muito comum a mãe de uma criança autista dizer “não” e mesmo depois de desistir do tal “não” a criança continuar chorando e berrando como se fosse o fim do mundo para ela. E nesse ponto os pais se sentem sem chão. É como se tudo que imaginássemos sobre criações de filhos caísse por terra.

Para aprender a lidar com essa situação, eu tive muita ajuda dos terapeutas que acompanham minha filha, principalmente das psicólogas. A primeira coisa que comecei a aprender com elas foi que aquele choro, aquele berro, aquela cena de ela jogar-se no chão não queriam dizer que minha filha estava verdadeiramente sofrendo. De fato a pequena, como toda pessoa do mundo, não gostava do “não”, mas não estava sofrendo demais. Para que eu entendesse isso, porém, não foi da noite para o dia!

Eu odeio ver minha filha chorar (mesmo que seja por um mero joelho ralado), então não foi fácil compreender que ela não estava realmente padecendo pelos “nãos”. Aos poucos fui internalizando isso, embora a certeza só tenha vindo quando surgiram os resultados.

Com orientações das psicólogas, fui instruída a não ceder depois de um “não”. Se eu disse que algo não pode, mantenho minha posição independente da reação de minha pequena. No começo isso me parecia loucura, uma vez que até então parecia impossível dizer “não” para a Gabriela sem que ela tivesse uma reação extremamente intensa, mas aos poucos fui compreendendo melhor essa dinâmica.

Eu passei a dizer o não de forma firme, mas sem perder a doçura. Quando ela tinha uma reação de choro/grito/jogando-se no chão/etc. eu não a repreendia, pelo contrário, minha reação passou a ser de não esboçar reação. Eu simplesmente fingia que nada estava acontecendo – e isso é muito difícil para qualquer mãe, acreditem. Ficava próxima evitando que ela se machucasse, mas não dava atenção. Quando ela se acalmava, eu me colocava de forma a ficar em sua altura, e com calma a convidava para outra atividade (“quer tomar um suco?”, “quer fazer xixi?”), e nesse momento era muito normal ela voltar a chorar, ao que eu retomava minha postura anterior (de fingir que nada estava acontecendo).

É importante entender o porquê dessa postura: seja brigando porque a criança está tendo aquela reação exacerbada, seja mimando para ela parar de ter aquela reação, você estará dando atenção à atitude – e é exatamente isso que a criança quer naquele momento. Deixando de dar atenção àquela atitude, deixando ela se acalmar e perceber que você não vai ceder, você não estará reforçando aquele comportamento.

Na primeira vez que agi assim, a Gabi se descontrolou por um longo tempo, e, de repente, ela parou de chorar e foi brincar como se nada tivesse acontecido (um pouco brava comigo, na verdade). Aos poucos esse tempo de choro foi diminuindo, e em menos de dois meses tornou-se muito raro a Gabi agir de forma exacerbada diante do “não”. Não que nunca mais tenha acontecido, mas positivamente mais raro, e bem menos intenso.

Outra coisa que aprendi com as terapeutas de minha pequena é que dizer “não” e depois ceder durante a mesma situação faz com que a criança crie um limite mais alto de reação. Trocando em miúdos, cada vez que voltamos atrás no “não”, fazemos com que a próxima vez que o dissermos a reação seja pior. Por outro lado, embora não se possa dar um “sim” ao invés do “não”, devemos dizer “sim” sempre que pudermos. Eu uso para mim uma regrinha básica para cada “não” tento dar dez “sins”.

Às vezes ficamos tão apegados a apresentar aos nossos filhos o que não pode que nos esquecemos de mostrar a eles o quanto estamos felizes quando eles estão fazendo algo de legal. Devemos tentar propiciar um ambiente, um contexto, que priorize que a criança faça coisas legais e acerte. Devemos construir um entorno que deixe mais fácil o acerto que o erro, e a cada acerto demonstrarmos o quanto estamos felizes. Pense em você: quantas vezes você fez tudo certinho e tudo que queria era reconhecimento e esse reconhecimento não veio?! Não dá uma sensação ruim, de frustração? A criança autista também se sente assim quando faz algo certo e nós não demonstramos o quanto estamos felizes por isso.
Creio que é muito importante que o processo de lidar com o “não” seja feito com docilidade, por pessoas muito próximas e que amem muito a criança. Aos poucos os pequenos irão generalizando essa atitude. A caminhada não é fácil para os pais! É bastante dolorido, difícil, exige que transcendamos nossos instintos. Em locais públicos tudo se torna ainda mais complicado. Mas esses manejos passados pelas psicólogas funcionaram MUITO com a Gabriela (e com muitas outras crianças que conheço).

É importante você levar em consideração que tudo que eu apresentei sobre o “não” são aspectos gerais que aprendi na jornada de tratamentos de minha pequena e não excluem a necessidade de você, como mãe, procurar ajuda especializada para orientá-la diante das situações. Não tenha vergonha de perguntar a psicólogos e médicos assistentes de seu pequeno sobre como agir, e de, caso permaneçam as dúvidas, perguntar mais mil vezes. Lembre-se de que cada criança é uma criança, e cada tratamento será um tratamento, sendo que a melhor resposta sempre virá dos profissionais que acompanham seu filho.

E também é muito importante: quando vir outra mãe ou pai (responsáveis e amorosos) de criança autista fazendo algo completamente diferente do que acabei de colocar aqui, ou do que você acha certo, ou do que os profissionais que trabalham com seu filho lhe orientaram, não recrimine, mas apoie-a por estar tentando. Repartir o mundo entre mães/pais certos e a mãe/pais errados é uma forma de segregação tão cruel quanto aquela que separa a criança “típica” da “atípica”. Somos todos s simplesmente pessoas, trabalhado com tudo que temos de melhor em nós e entre nós!

Precisamos abrir mão do mito de que toda mãe e pai sempre sabe o que fazer. Às vezes não sabemos o que fazer (como dizer “não” ou como dizer “sim”) e não há vergonha nisso. Ninguém nos prepara para tudo que viveremos com nossos filhos e talvez essa seja a maior aventura. Estamos todos tentando acertar, fingindo saber exatamente o que estamos fazendo enquanto internamente sempre nos resta a dúvida de estarmos ou não seguindo pelo caminho certo. Maternidade e Paternidade são formas de incerteza enquanto são formas de amor. Ser mãe de uma criança (autista ou não) é uma jornada de descobertas sobre o outro e sobre você mesmo. E lidar com o “não” e o “sim”, seus desafios e superações, faz parte dessa travessia.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]