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O caso do mendigo que roubou o sorriso de alguém
| Foto:
Rubenshito/www.sxc.hu
A oferta irrecusável: um sorriso.

De repente, o mendigo parou de pedir dinheiro aos transeuntes. Alguém oferecia algo inusitado: um sorriso. Sem dentes, é verdade, mas um sorriso. Apesar de encabulado, diante da surpreendente oferta, o mendigo sorriu de volta. Outro sorriso banguela, mas também um sorriso. O mendigo tentou se lembrar da última vez em que sorrira assim, com o sol alto e os pés no chão. Não conseguiu, e o sorriso foi embora, como se percebesse que errara o endereço – aquela boca vazia e maltratada não parecia um lar de sorrisos.

O alguém que sorria notou a mudança de expressão no rosto do mendigo, mas não desistiu: continuou alegremente exibindo-lhe as gengivas. Ao notar a insistência do alguém sorridente, o mendigo foi tomado por uma vontade incontrolável de retribuir a oferenda e não resistiu: voltou a sorrir. Passou-lhe pela cabeça, então, que talvez o sorriso fosse contagiante como o bocejo. Ao pensar em bocejo, um tremor atingiu-lhe a face, vindo das profundezas do corpo, como um sismo, os olhos fecharam e a boca abriu até sua extensão máxima. Bocejou, ruidosamente. Logo que se recompôs e pôde voltar a abrir os olhos, viu que o alguém sorridente agora era alguém bocejante, contagiado.

“Um sorriso por um bocejo, uma boa troca”, pensou o mendigo. Antes que pudesse sorrir do próprio gracejo, contudo, teve de se esquivar de um passante apressado, que quase o atropelou. Num primeiro momento, xingou, amaldiçoou e gesticulou. Mas logo desistiu de demonstrar sua indignação contra a falta de cuidado do pedestre, ao notar que nem seus berros eram capazes de chamar atenção para si. Com a mão erguida, num último gesto contra o atropelador, contra a indiferença, contra o mundo, sentiu-se invisível. Por pouco tempo. Logo percebeu que o alguém bocejante, que agora voltara a ser sorridente, continuava dedicando toda a sua atenção a ele. E o imitava, com a mão erguida, acenando – e sorrindo, a plenas gengivas. Alguém, em meio à multidão, notava-o. Alguém era capaz de ver além de suas roupas puídas, da camada de sujeira que cobria sua pele, de sua própria pele maltratada. Alguém o enxergava como igual, como ser humano, digno de um aceno, de um sorriso. Feliz, o mendigo voltou a sorrir.

Por um momento breve e eterno, como são os momentos que permanecem, o mendigo e o alguém se entenderam, sem palavras, apenas com sorrisos e acenos. Até outro alguém perceber o que se passava. E o instante puro de compreensão humana passou, quando o outro alguém gritou: “Pare de se engraçar com o meu filho, vagabundo! Vou chamar a polícia!”. Assustado, o alguém deixou de ser sorridente, passando a chorar como bebê – que era. O susto foi contagioso como o sorriso, mas não o choro. O mendigo que pensara ter esquecido como sorrir, esquecera como chorar. Sem ação ou lágrimas, ficou olhando para o bebê que chorava e nem notou que agora tinha a atenção de todos os transeuntes: era apontado e ofendido pela multidão. Antes de ser posto para correr por um justiceiro de ocasião, o mendigo ainda sorriu uma última vez para o alguém que chorava – sentindo-se culpado, quis reparar sua falta, devolver o sorriso que havia roubado.

***

Participei com esse conto/crônica (croniconto) de um concurso literário. Não ganhei, claro. Tudo bem. Gosto mais de ganhar sorrisos do que prêmios. Que o fim-de-semana reserve a todos muitos sorrisos (e não os cobre de volta).

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