• Carregando...
(Foto: Henry Milleo / Gazeta do Povo)
(Foto: Henry Milleo / Gazeta do Povo)| Foto:
(Foto: Henry Milleo / Gazeta do Povo)

(Foto: Henry Milleo / Gazeta do Povo)

“Tenho um aluno que não gosta de mim…” Amigo, amiga do magistério, quantas vezes ouvimos essa frase – principalmente na medida em que o alunato cresce e reivindica o direito de externar seus afetos – e desafetos. Não raro, somos nós o alvo dos destemperos da turma da carteira.

Longe de mim promover aqui uma sessão de autoajuda. Não levo o melhor jeito para o ofício. Mas é impossível estar no ambiente escolar e não se dar conta de que paripassu a um espaço de conhecimento e coisa e tal, a escola é um ambiente em que amores e ódios se digladiam. Concordo que não se trata de um aspecto em primeiro plano – o pacto entre professores e alunos é um dos mais afortunados que existem e se sobrepõe. Mas que o impasse existe, existe.

Nesse quesito, dois opostos sempre me impressionaram – e isso não quer dizer que eu, como qualquer mortal, não penda para um deles. De um lado tem o professor que parece se nutrir das relações atribuladas com os educandos. Eu me pergunto se trocar farpas com a gurizada traz algum ganho secundário – tem gente que extrai prazer do exercício do poder, por isso foi ser professor. Na melhor das hipóteses, dirão alguns, alimentar atritos com os alunos pode ter a ver com “paternidade responsável”, ou uma espécie de clarividência do papel do professor: não está ali para ser amigo. Confesso, não sei explicar.

Quanto ao segundo oposto, batata, diz respeito ao professor que depende emocionalmente do afeto dos alunos. Trabalha para ser amado. Vai até aos churrascos de turma, para o qual, nem desconfia, foi chamado apenas por gentileza: não era para ser levado a sério. Não raro, esses mestres carismáticos e hábeis na arte da cumplicidade são objeto de contenda e ciúmes no ambiente acadêmico. Bem sabemos. Não poucos os veem como desordeiros emocionais da escola.

Nem é preciso falar muito a respeito. Os opostos são também extremos – e como bem nos ensinaram os antigos, “a virtude está no meio”. Nem tanto amado, nem tanto odiado. Fim de papo? Acho que não. Podemos nos debruçar sobre toda a obra de André Conte-Sponville sobre a virtude, melhorar nossa performance emocional em algum divã, e ainda assim vamos encontrar o imponderado – a dita convivência com a rejeição do aluno. Cá entre nós, é uma das situações mais desgastantes da rotina escolar, um peso a mais, como se não nos faltasse com o que nos preocupar.

Despejo aqui essas vastas emoções e pensamentos imperfeitos porque dia desses servi de ombro para uma amiga professora. Um aluno lhe declarou, sem meios tons, que não gostava da condução da disciplina e coisa e tal. Não o fez com o uso de afagos e simpatia. Jogou pesado. Dá para imaginar a cena. Ao ouvi-la, fiz o que qualquer um faria – dei conselhos, usei do “deixa disso”, repeti o mantra de Rudyard Kipling – algo como o elogio e a crítica são dois amigos enganosos.

Não tive como não lembrar das vezes em que experimentei depressão semelhante. Ao saber que estava estourado de faltas, um aluno ameaçou me bater. Na hora, lembrei do que me ensinou uma irmã, professora da periferia: “Não demonstre medo”. Foi o que fiz. Funcionou. Outra guria, logo no meu primeiro ano em sala de aula, me enredou em todas as sutilezas da personalidade agressiva passiva, a pior de se lidar. Na sequência, outra rejeição: “Diferente dos outros, não gosto de sua aula”, disse o camarada mais talentoso daquela safra. Houve aquele que disse que minha aula “não servia para nada”. Magoei – mas na hora brinquei, dizendo que tomaria como um elogio: “As melhores coisas da vida não servem para nada mesmo.” Ele não entendeu. Não funcionou.

E tem os que se manifestaram em avaliações, na rádio corredor, os que abriram livros durante a aula, os que nunca saberemos. Por sorte, ganhei a parada com meus principais detratores, do que muito me orgulho. Eles me fizeram lembrar o que diz o jornalista Marcelo Coelho, num inspirado texto, vejam só, sobre a crítica cultural: “A experiência de não gostar pode ser mais rica do que a experiência de gostar”. Coelho se referia a filmes, livros e peças, mas serviu como uma luva. Tinha de entender a turma do contra – e, juro, sem bom mocismo de minha parte, muito me valeu.

Para encurtar a conversa, informo que, com exceção de um “declarante do contra”, que sumiu do mapa, virando uma lenda entre os colegas de sua turma, os outros se tornaram bons amigos. O valente, aquele, faz um belo trabalho com a infância vulnerável, um baita orgulho. A agressiva passiva se tornou uma comunicadora na área da educação, grande garota. O que dispensou meus serviços, hoje é um chapa, e me dedica um abraço demorado a cada vez que nos encontramos na Rua Marechal Deodoro. Acho que descobriu o valor das coisas sem serventia – ou pelo menos quero acreditar nisso.

Nenhum desses jovens era ruim por não gostar de mim ou por achar minha aula um embuste, para não dizer outra palavra parecida. Estou convencido que a sinceridade que manifestaram dizia algo a mais, ou a menos, do que o que estava expresso nas palavras. Entender o que queriam dizer, caso a caso, foi uma lição de casa.

Como a gente trabalha, né.

>> José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da UFPR.

>>Quer saber mais sobre educação, mídia, cidadania e leitura? Acesse nosso site! Acompanhe o Instituto GRPCOM também no Facebook: InstitutoGrpcom

 

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]