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(Foto: Daniel Castellano)
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(Foto: Daniel Castellano)

(Foto: Daniel Castellano)

Quem trabalha com reportagem – e reportagem de “cidades”, como se diz no jargão – se depara volta e meia com um milagre: o da educação. Sei que esse não é um bom começo para um texto. Não se deve manipular, assim, de cara, as emoções do leitor. Não pelo menos do ponto de vista jornalístico, que recomenda o banimento dos bordões, dos apelos emocionais, dos clichês. E afirmar as maravilhas operadas pelo professorado é um dos cumes do lugar comum. Mesmo assim, permitam-me, “é um milagre”. O momento pede. Explico por quê.

Nas tais reportagens de “cidades” o repórter acaba pisando em lugares onde a negligência do Estado é flagrante. Quase ou nenhum asfalto. O ônibus que passa de hora em hora. Iluminação pior que luz de velas. Policiamento falho – e a periferia, muitos ignoram, sofre mais com a violência do que o Batel ou as Mercês, ao contrário do que dá a entender a grita das classes médias. Mas onde falta tudo, a escola está lá, com seus professores a postos, feita uma embaixada do poder público em terras distantes.

É certo que a escola não está sozinha no deserto dos arrabaldes. Chama atenção, igualmente, a ação dos conselheiros tutelares. À revelia de viverem às turras com as escolas, ou vice-versa, quem diria, são os conselheiros que entram nas casas mais modestas e se encaram os maiores dramas sociais. Ponha-se na lista os agentes de saúde, cuja contribuição silenciosa ainda pede justiça, o médico do postinho, o guarda municipal, o líder comunitário… Não se trata, é claro, de mundo perfeito habitado por figuras ideais. Mas diria que a chance de encontrar um cidadão heroico nos bairros distantes é de 5 em 10. Impossível que entre eles não haja pelo menos um professor.

Aquele que ensina – ensine bem ou mal, certo ou errado – tem uma percepção extraordinária de sua missão, ingrediente que ameniza umas tantas falhas. Some-se a essa espécie de consciência aguda do próprio lugar no mundo, o fato de que os mestres lidam com o conhecimento, e com o conhecimento repassado, de forma acessível. A cada dia, somam, agregam, aprendem porque estão falando daquilo que ensinam. Fazem sinapses, traduzem o complexo em pílulas de simplicidade, um barato. Tão estimulante quanto é a experiência de a cada jornada trocar impressões com outros que professam a mesma fé, que padecem das mesmas penúrias e incertezas.

Essa esteira de intercâmbios diários dá uma química toda especial às escolas – em especial as escolas que se encontram em zona de risco. Difícil que um professor não se veja imbuído de algum profetismo, desejo de entrega e grandeza diante das bombas armadas que lhe atiram ao colo todos os dias. É muito corriqueiro, por exemplo, que os educadores sejam ombros amigos dos desvalidos – a exemplo do que me contou, dia desses, a diretora Maria Cristina Andrade, da Escola Municipal Germano Paciornik, no Boqueirão. A instituição atende preferencialmente crianças que moram nas favelas às margens do Rio Belém. Mas os pais da piazada vivem lá, pedindo conselhos, chorando as pitangas. Os professores, claro, acolhem.

Digo todas essas coisas em alusão do disparate do “29 de abril”, o dia que ficou para a história. O massacre da Praça Nossa Senhora de Salete não sairá da memória, jamais, e essa é a certeza. Além da lista de impropérios que se pode apontar sobre o que aconteceu ali, o que mais pesa é o caráter simbólico de um ataque a professores. Os manifestantes eram profissionais que dividem seu saber com alunos da escola pública – não raro em lugares onde são, senão a única, a melhor representação do Estado. “Temos as mãos sujas de giz”, gritaram vários deles aos policiais, aos repórteres, lembrando o que não podemos esquecer. A sensação de que um espelho foi quebrado é flagrante. Sabe aquela piadinha de que o cara é tão ruim que bate na mãe na noite de Natal? Pois é – foi parecido.

Dentre as muitas perguntas que ficaram do episódio, uma se impõe. Os políticos sabem de onde vêm os votos. Em tese, senão pelo respeito a quem ensina, deveriam poupar os professores pelo peso que a categoria tem sobre a opinião pública. A influência dos educadores sobre o eleitorado da periferia, inclusive, chegou a deixar o Ministério Público em pé, tempos atrás. Não é mais assim?

Pelo visto, os cálculos que os institutos de pesquisa despejaram na mesa de deputados e do governador apontam que são em número maior os que defendem uma polícia autoritária, truculenta. Seriam mais numerosos do que pensamos os que não reconhecem o trabalho de um professor. Daí o pouco caso estatal, amparado pela conivência de uma massa acéfala, que vota pautada unicamente pelos desejos de consumo, pelo hedonismo e pelo individualismo. Será? Ou é isso ou a turma que comandou o massacre é muito curtinha das ideias do que poderíamos imaginar. Nem o pragmatismo político funciona mais. Fica a questão.

O que nos alivia é que o milagre vai continuar a acontecer, agora como o outro provado no fogo. Se você não viu ainda, pegue o ônibus, seu carro, e vá para o ponto mais distante do mapa da cidade. Lá vai encontrar uma escola, um professor. A cara de quem ensina é de canseira. Pois cansa. O prédio raramente é uma beleza de tirar selfie. Mas lá dentro sempre está um homem e uma mulher capaz de falar das razões que o levam todos os dias a se levantar da cama. É um crível encontrar alguém que sabe dizer porque está em pé e postos. Quanto aos tolos, a eles está reservado o esquecimento. Que continuem no faz-de-conta, sentindo-se heróis. Heróis de balas de borracha.

*José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Paraná – UFPR. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.

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