• Carregando...
(Foto: Henry Miléo)

(Foto: Henry Miléo)

Uma das características da literatura é a sua capacidade de fugir do ramerrão a que muitas vezes acabamos condenando nossa existência. A rotina tem suas vantagens, alguns automatismos também, mas quando tudo vira normal, quando nada mais é capaz de tirar o fôlego, de fazer descobrir sentidos antes insuspeitados, quando a vida cai, contraditoriamente, no ponto-morto, talvez fique chato arrastar o saco pesado dos dias, à espera de que no fim de semana ou nas férias ou na aposentadoria ou na cova a coisa melhore.

Então, se a literatura (e só quem lê sabe) é capaz de ampliar o jeito de ver o mundo, de renovar as rotinas, de espanar a poeira do cotidiano, a escola não deveria pensar com mais carinho na leitura? Se é importante saber as fases da divisão celular, também não seria importante saber mais sobre ansiedade, angústia, amor, ódio, paixão, compaixão, egoísmo?

Caímos, de novo, num dos dilemas mais velhos da cultura escolar: como fazer o aluno ler? Respondo, já me desculpando pela falta de originalidade: o professor precisa ser leitor.

Depois, vem a questão que me colocam: deve-se insistir na leitura obrigatória ou cativar o aluno pelo prazer da livre-escolha?

Vamos lá, de novo: mais do que trazer uma resposta inédita, busco apenas manter aceso o debate. Se o professor lê e sabe do que está falando, temos três quartos do caminho andado. O outro quarto eu investiria no método. E, aqui também, nenhuma novidade: equilíbrio entre o obrigatório e a livre-escolha.

Causando um pouco de horror nos não-leitores, eu diria que o objetivo maior de toda a escola (não só da disciplina de Língua Portuguesa) deveria ser a formação do leitor, e que a Literatura deveria ter papel muito importante. Nada a ver com reserva de mercado, entendam-me bem. O discurso literário, tanto por seu valor intrínseco como extrínseco, liga outros discursos, amarra-os de modo a se apropriar de outras linguagens para colocá-las na arena de conflitos do mundo e da vida.

Dito isso, o professor poderia, a partir de uma leitura coletiva obrigatória, ler junto com o aluno, ensinando-o a ir além da decodificação linguística e da identificação primária de elementos da narrativa. Trazer situações que a obra propõe, buscá-las em textos de outros gêneros, cotejar com a vida de cada um, devolver a experiência pessoal para enriquecer a leitura do texto em si, retirar e colocar sentidos possíveis, promover alimentações mútuas. Se temos universos simbólicos instituídos, que a leitura orientada sirva para criar fissuras nesse simbólico, tornando-o mais poroso e aberto a novas formas de pensar e sentir. Feito isso, hora da leitura de livre-escolha, buscando fazer o aluno identificar no livro que ele próprio escolheu o que lhe parece relevante para o seu momento de vida e o que ele acrescentaria à interpretação da obra. Isso poderia servir também para que o aluno identificasse livros de entretenimento, livros mais densos, essas coisas. E o processo recomeçaria com outra obra de leitura coletiva e obrigatória. Os gêneros devem ser variados, poesia, romance, conto, crônica, peça de teatro. Em outras disciplinas, por que não alguns livros de divulgação científica, algo tão pouco comum no Brasil?

A média de leitura no país é uma das coisas mais desoladoras que existem. Do jeito que escrevo, parece que estou criando regras in vitro, dentro de um laboratório, mas que levadas à vida real encontrarão uma série de obstáculos. Reconheço as dificuldades diárias e sei que é meio antipático e arrogante ditar regras. Que não chamemos de regras, então, mas de caminhos possíveis, pontos de partida que ganham outras cores conforme a vida real vai desenhando seus contornos tão peculiares.

 

*Artigo escrito por Cezar Tridapalli, coordenador de Midiaeducação no Colégio Medianeira, uma das escolas associadas ao Sindicato das Escolas Particulares do Paraná (Sinepe/PR). Formado em Letras (UFPR), especialista em Leitura de Múltiplas Linguagens (PUCPR) e mestre em Estudos literários, é também escritor, autor dos romances “Pequena biografia de desejos” e “O beijo de Schiller”. www.cezartridapalli.com.br. O SINEPE é colaborador voluntário do Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.  

**Quer saber mais sobre cidadania, responsabilidade social, sustentabilidade e terceiro setor? Acesse nosso site! Acompanhe o Instituto GRPCOM também no Facebook: InstitutoGrpcom, Twitter: @InstitutoGRPCOM e Instagram: instagram.com/institutogrpcom

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]