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A falta do senso de urgência
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No filme “mil vezes boa noite”,  do diretor Erik Poppe, a personagem interpretada por Juliette Binoche é uma fotógrafa de conflitos atormentada pelo que vê e pela ansiedade e medo que causa no marido e nas duas filhas. Na última viagem, ao acompanhar uma mulher bomba no centro de Cabul, fotografando os últimos momentos de vida da desgraçada, a explosão que a mulher provoca quase  leva a fotógrafa junto. Ainda tonta, com o pulmão perfurado, em meio a barafunda de gritos e cheiro de carne queimada, a fotógrafa  encontra forças para levantar e tirar mais fotos.

Em outro momento do filme, levando a filha mais velha ao Quênia, em uma área de refugiados considerada “segura”, a fotógrafa presencia uma invasão de membros de uma clã rival aos que ali haviam procurado abrigo, armados até os dentes, atirando em todo mundo. Imediatamente leva a filha para o carro da ONU e volta, sob os protestos desesperados da menina, para registrar os acontecimentos. Graças às suas fotos, forças de segurança são enviadas e passam a proteger o abrigo dos atacantes.

Assistir a um filme desses no conforto do cinema causa uma estranha sensação. É como se a tela olhasse para você e dissesse : “o que você está fazendo para tornar público as desgraças que ocorrem ao seu redor e que ninguém enxerga? Quais serão as fotos que você terá coragem de publicar, pondo em risco seu conforto e tranquilidade?”

No filme, o marido da fotógrafa, um pacato professor de biologia marinha, chefia um grupo de pesquisadores que monitora a poluição do mar da Irlanda e comemora seus êxitos. Ao mesmo tempo não aceita os riscos que a mulher corre e não entende  a razão de ela fazer aquilo, deixando a família sempre tão apreensiva.

Certa vez li um artigo que “denunciava” Gandhi como um péssimo pai e família. Mandela também não pensou na família ao se recusar a aceitar o acordo do governo racista da África do Sul e permanecer preso por 27 anos.

Parece que há um elemento comum a todos os que arriscam seu conforto em nome de uma causa pública: o senso de urgência. A convicção de que “algo” deve ser feito, algo deve ser revelado, algo deve ser mobilizado, algo deve ser transformado. Logo, já. E não há tempo a perder. E, por isso, certos confortos ou mesmo prioridades privadas devem ser relevadas em nome desse bem maior  que Aristóteles chamava de “bem comum”.

ThiagoRecchiaEscandalos

Sai do cinema constrangido, quase envergonhado. Há, entre nós, nesse momento, muitas urgências e muitos perigos. E há também um ideia – equivocada – de que não é bem assim, que não é o fim do mundo, que tudo vai se resolver, que é intriga da oposição, que é coisa de quem não sabe perder, que é acusação sem prova, que quem tá no poder sabe o que tá fazendo…

 

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